quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O Grupo dos 8ito e a Profecia de Vaanda


Gilberto Medeiros

Imagem: Gilberto Medeiros. Print lua cheia - série Shanara.







Imagem: Gilberto Medeiros. Print lua cheia - série Shanara.

O sol finalmente nasceu.

Começou a subir a Leste, às nossas costas. De cima da vereda, olhávamos o vale abaixo: longo, negro como as entranhas dos infernos, e frio. O sol fazia o negrume da noite se recolher do Oeste, mas o vale continuava coberto por uma névoa cinzenta e compacta. Não se via nada abaixo dela, senão formas de grandes aglomerados arbóreos. O rio corria à direita e desaparecia nas entranhas do vale. A mais ou menos 3km estava escondida a fortaleza da bruxa que viemos encontrar.

Do meu lado direito estavam Andora e Cármaon, e do esquerdo, Iankar e Maoma, quatro dos capitães selecionados para essa missão. Éramos agora cinco, dos 8ito que partimos de Kânion para Vaikar. Perdemos três companheiros, mortos e devorados pelas monstruosidades que nos atacaram. E isso não era brincadeira, tratando-se de quem somos: capitães testados em batalhas e expedições perigosas contra monstros, feiticeiros, magos ou bruxos capazes de dizimarem uma aldeia inteira num ataque de poder.

- Eu não acredito! – exclamou Andora. – Imaginei que este vale estivesse limpo. Mas olha isso: continua debaixo da mesma maldita névoa! Tão escura quanto se fosse noite.

- O feitiço de encobrimento foi lançado por Aracorn, o pior dos magos feiticeiros que existe. – comentou Cármaon. – Não é um feitiço que se desfaz com a luz do sol. Ele deve cobrir o vale inteiro...

 - Então o maldito feiticeiro realmente sabe? – interrogou Maoma.

- Não importa. – cortei a conversa. – Aracorn sabe quem somos e o que viemos fazer aqui, mas o mais importante é estamos preparados. Temos que descer o vale de um jeito ou de outro.

Iankar começou a descer sem dizer nenhuma palavra. Seu instinto natural de rastreador o fizera o melhor nessa categoria entre os rastreadores do Mundo Nascente.

Todos nós sobrevivemos à custa de muita luta na noite anterior. Agora que o sol apareceu, podíamos nos ver: cheios de cicatrizes e cobertos de sangue e líquido escuro vasados de monstros guerreiros mortos.

Encontrar a Bruxa Vaanda era nossa missão. Ela era portadora da Profecia que revelava como destruir Abssoul, o maior inimigo dos povos do Mundo Nascente, quando ele escapasse de Bulgorn, o exílio para onde foi mandando após sua derrota nas Guerras Primais, há dez mil anos.

As lendas sobre as batalhas de dez mil anos viviam entre os povos do Mundo Nascente. No entanto, muito de sua força havia se perdido, até que Aracorn nascera, há três mil anos. Seu nascimento trouxe temores e fez nascer a profecia da morte de Abssoul. Magos, feiticeiros, sábios, bruxas e grandes líderes retomaram os estudos e debates sobre as guerras antigas e concluíram que Aracorn era cria de Abssoul.

Mandado para preparar o retorno de seu progenitor, Aracorn começou a eliminar todos os que se lhe opunham. Quando descobriram a profecia de Vaanda, o Conselho do Mundo Nascente criou uma fortaleza em Vaikar e a isolaram ali, cercada de poderosas barreiras enfeitiçadas que impediram, por muito tempo, Aracorn de a encontrar e matar.

Mas, três mil anos se passaram e parte da profecia se perdeu. Durante esse tempo, Aracorn replanejou suas ações, ficando quase escondido. No entanto, agora os horrores recomeçaram e, de um jeito ou de outro, ele descobriu o paradeiro de Vaanda e vinha tentando destruí-la. Então o Conselho do Mundo Nascente se reuniu e escolheu oito dos seus melhores capitães para encontrarem a fortaleza de Vaanda, recuperarem a profecia e levá-la de volta a Kânion. Foi então formado o Grupo dos 8ito.

Dos oitos capitães escolhidos, cinco descíamos o escuro e frio vale para Vaikar. Iankar ia à frente, silencioso como uma sombra. Rastreia uma trilha ou estrada. Usa espadas curtas e emblema de falcão no peitoral da armadura. Iankar consegue ver mesmo na névoa densa. Uma das habilidades mais importantes de um rastreador é sua visão. Quando é aprovado em seu treinamento final, recebe o Feitiço da Visão, que o possibilita enxergar mesmo no mais escuro breu.

Sou um capitão treinado e líder desta equipe. A 300 anos ocupo o cargo de Capitão da Guarda Real de Kânion. Minha responsabilidade é manter minha equipe segura e viva, se puder. Distribuo os guerreiros conforme seu grau de importância, de rapidez e força. Iankar, como deve ser, vai à frente. Maoma segue-lhe. A Capitã arqueira está no lugar de onde pode atirar tanto para a frente quanto para trás sem ser atingida logo depois. Eu venho em seguida. Esta posição me é garantida por ser o líder do grupo e pelo meu papel nesta missão. Depois de mim vem Andora, a Capitã espadachim que toca terror em qualquer inimigo. No final da fila vem Cármaon, o Capitão cavaleiro que luta com machados. Cármaon é grande e assustador. Sua força ultrapassa a de dois de nós juntos e sua ferocidade numa batalha tanto encoraja seus companheiros quanto aterroriza seus inimigos.

A 300 metros abaixo, Iankar encontra a trilha. Para no meio dela, olhando para a direita e depois para a esquerda com a testa franzida. Já estamos todos na trilha e compreendemos imediatamente sua desconfiança: a trilha é uma estrada bem usada. Não tão larga para passar um carro, mas aberta o suficiente para passar vários guerreiros enfileirados rapidamente. Há rastros nas duas direções. Pés grandes e pesados. Animais de guerra estão usando a estrada constantemente. Isso não deveria ser assim.

- Há soldados inimigos acampados aqui perto. – Iankar fala pela primeira vez, o rosto fechado e os olhos de falcão iluminados por uma raiva repentina.

- Sim. E com toda certeza soldados de Aracorn. – falo para todos.

- Então as informações de que esteja tentando matar Vaanda são verdadeiras. – completa Maoma.

- Infelizmente podemos afirmar que sim. – digo. – Não foi à toa que Camaaz sempre defendeu que deveríamos ter estabelecido um posto avançado nesta região para guardar a fortaleza.

- E o Conselho sempre afirmou que os feitiços eram suficientes. – rosnou Cármaon com seu costumeiro mal humor. – Que manter Vaanda longe das atenções era a melhor forma de protegê-la.

- Talvez tenha sido durante muitos anos, mas Aracorn não só descobriu seu esconderijo como usou o descuido do Conselho a seu favor.

- Mas ainda não a capturou, do contrário, já teria marchado contra Kânion. – concluiu Andora, que se mantivera calada até agora.

- Não. Não a capturou. – digo. – Os feitiços são muito poderosos para serem derrubados facilmente. Aracorn, no entanto, não é tolo e é um demônio poderoso, se não for impedido, vai derrubá-los em algum momento. Agora entendo porque descobriu tão cedo que vínhamos.

Todos havíamos alimentado a suspeita de que alguém nos havia traído em Kânion, pois apenas três dias após partir fomos perseguidos por caçadores de Aracorn. Nossos companheiros morreram nos 12 dias que se seguiram e uma trilha de corpos de todo tipo de criatura ficou pelo caminho. Na noite anterior fomos atingidos pela névoa escura do feitiço de Aracorn. Agora todos sabíamos porque ele descobriu: na verdade, estava esperando por isso e vinha observando Kânion há muito tempo. A tolice do Conselheiro tinha dado a ele uma vantagem grande e perigosa.

- Temos que continuar. Precisamos ter cuidado. Os perigos agora são mais próximos e em maior quantidade se há um acampamento aracorniano aqui. – digo.

Retomamos nossa marcha, mais rápidos e mais atentos. Depois de uns 500 metros, ouvimos o barulho. Um rugido estrondoso, gutural e longo. Sacamos nossas armas e começamos a correr com a ligeireza de nosso treinamento. O tropel soou logo atrás de nós. Paramos e estacamos. A fera apareceu na estrada com as presas à mostra, rosnando e saltando numa velocidade alarmante. Uma flecha assobiou sobre nossas cabeças e cravou entre o pescoço e a omoplata do tigre besta guerreiro. O animal tropeçou para a frente, girou no ar e remeteu de costas em nossa direção, quando outra flecha perfurou sua coluna, fazendo-o desequilibra-se completamente, tombar de costas e rolar para nossos pés. Em segundos os machados de Cármaon deceparam seu pescoço. Ficamos parados por uns segundos, ouvindo e observando enquanto o sangue escuro e mal cheiroso jorrava do corpo e da cabeça da besta morta.

- Vamos! – ordenei e recomeçamos a correr.

Aquele era apenas um batedor. Logo estaríamos sendo atacados. A primeira função de um batedor é dar sinal de que a presa foi encontrada, depois, se ela fugir, atacá-la a fim de atrasá-la e matar quem pudesse.

Aquele tigre é um dos muitos animais escravizados, depois mortos e por fim ressuscitados por Aracorn como bestas guerreiras. Um exército daquelas bestas estava em algum lugar ao nosso redor. A julgar pela distância que ainda nos encontrávamos da Fortaleza de Vaanda, ele estava à nossa frente e um pelotão vinha logo atrás, já que o batedor nos achou vindo de trás. Exército ou pelotão, qualquer um dos dois seria uma desgraça naquele lugar. Mas não poderíamos parar e tínhamos que alcançar Vaanda de um jeito ou de outro.

Corremos. Fomos treinados para lutar em qualquer lugar e em qualquer situação e para vencermos longas distâncias correndo em pouco tempo. Aquela estrada estava limpa, resultado da confiança estremada de quem liderava a tentativa de matar Vaanda. Tinha certeza de que não seria descoberto antes de finda sua empreitada. Apesar dos quinze dias de caminhada e dos doze dias de luta, nossos corpos estavam bem. Mantínhamos nossa força e nossa mente controladas, nossas cicatrizes curavam-se rápido. Tudo isso era devido não só ao treinamento, mas também aos feitiços que nos envolvem e à comida feita com produtos trabalhados para manter o corpo saudável, altamente curável e forte. No entanto, não impede que sejamos mortos.

Minutos depois ouvimos um uivo vindo de trás. O pelotão havia encontrado a carcaça do tigre. Seguiram-se outros uivos, em tom de comando. Ainda não veio nada da frente ou de outro lugar. Mas o que quer que viesse de trás vinha rápido.

- Mais rápido! – comandei e aceleramos.

Iankar corria como se estivesse flutuando. Maoma, eu e Andora mal tocávamos os pés no chão, mas Cármaon fazia seus enormes pés ressoarem na estrada. Seu peso e seu tamanho, no entanto, não o impediam de ser tão veloz quanto qualquer um de nós. No fundo mantínhamos a ordem e a velocidade suficientes para deixar nossos perseguidores à distância, mas não tão rápidos que nos pudesse meter numa armadilha antes de a percebermos.

A estrada bifurcou logo adiante. Iankar seguiu pela direita sem pestanejar. Ninguém questionou. Estamos tão acostumados a confiar em nossos rastreadores que quase nunca os questionamos. Iankar nunca erra e nos últimos quinze dias tem nos mantido no caminho certo e nos livrado de quase tudo que vem pela frente.

Uma coisa parecia mudada: as indicações do Conselho do local da Fortaleza de Vaanda. Era visível que o exército aracorniano interferira no ambiente, fisicamente e com feitiços. A névoa era apenas um deles. Mas não de modo a destruir todas as nossas referências. Já havíamos percorrido mais de 1km desde que o sol nascera. Tínhamos esperança de percorrer pelo menos a metade dessa distância sem ser notados. Agora, no entanto, estávamos preparados para sermos atacados a qualquer momento. E isso não demorou.

Um vulto enorme saltou da elevação à esquerda direto para cima de Iankar. O guerreiro embolou-se e rolou no chão tão rápido como uma pedra atirada. O símio uivou de frustração, bateu suas enormes patas no chão e girou, braços longos estendidos em nossa direção. Logo depois curvou-se para trás num grito terrível de dor. As facas de Iankar perfuraram suas costas uma após a outra. Eu e Andora atacamos com nossas espadas. Andora usava espada longa e afiada que segurou com as duas mãos e perfurou o ventre da besta. A besta curvou-se para a frente e recebeu minha espada, que entrou por baixo do queixo e enterrou em seu crânio. Cármaon cortou a perna esquerda da besta, fazendo-a vir abaixo. Saltei paro o lado e para cima, girando e arrastando a espada que se soltou. Enquanto o símio tombava, aceleramos para a frente. Mudamos nossa formação com Maoma, que nem mexeu um dedo nessa luta, correndo na frente. Maoma reduzira o tamanho de seu arco e o prendera às costas. Flechas seriam pouco usadas agora, mas o arco, encurtado, formava uma arma tão perigosa quando uma espada, com cortes nas duas extremidades. Corria agora com sua espada de uma mão e uma adaga. Suas flechas estavam presas às costas e outras adagas e facas em seu sinto, botas e sabe-se lá mais aonde. Todos nós usávamos mais de um tipo de arma e mais de uma arma iam presas aos nossos corpos.

Iankar assumiu a posição logo atrás de Maoma. Com ela correndo na frente, a função dele agora era observar mais à distância e acima dos montes e nos alertar de qualquer perigo percebido. Aquele símio estava muito bem escondido para que Iankar não o percebesse. Na retaguarda, Andora e Cármaon estavam em silêncio e concentrados. Eram peritos em ouvir à distância e estavam auscultando a retaguarda. Segundos depois ouvimos os uivos. Acharam o símio morto. Nossa luta nos atrasou o suficiente para permitir que o pelotão se aproximasse perigosamente.

- Temos que acelerar, ou vão enfiar os focinhos em nossos traseiros já, já! – advertiu Cármaon, com seu tom de humor que sempre usava no meio do perigo.

- Não. Temos que manter o ritmo e a cautela. – respondi. – Temos perigo vindo de todos os lados agora. Precisamos estar seguros quando tivermos que lutar pra valer.

- E temos que chegar vivos em Vaanda! – gritou Andora, que detestava a ideia de ser morta no meio de qualquer missão.

- Falou mom capitã e minha senhorrita perrigôssa! – brincou Cármaon, com a imitação de um sotaque inexistente, mas que todo mundo usa.

Todos sorrimos. Cármaon sabia como era importante manter um grupo de guerreiros animados. Mesmo sendo todos nós grandes guerreiros, aquela missão já havia dado em nossos nervos mais de uma vez.

Um assobio fino e baixo fez com que parássemos. Iankar deu o sinal e apontou para a colina mais à frente. Vultos se posicionavam no topo dela.

- 10. – disse ele. – Maoma? – indagou.

Maoma já havia liberado seu arco e posto nele uma flecha.

- Flechas triplas. – pediu Iankar.

Ela então retirou mais duas flechas e as colocou na corda. Iankar encostou seu dedo no ombro dela e liberou sua visão. As três flechas cantaram no ar e derrubaram três bestas na colina. Logo em seguida mais três flechas cortaram o ar e três novos corpos tombaram e rolaram colina abaixo. As bestas restantes não esperaram outra saraivada. Partiram em nossa direção uivando e rosnando. Maoma girou para trás e nós fechamos a frente para o impacto. Um uivo veio detrás e ouvimos uma flecha zunir. Antes que as bestas chegassem pela frente, nos abrimos numa formação estrela e nos preparamos.

- Inferno de Drocorn! – xingou Cármaon de sua posição às minhas costas. – São mais de 30 bestas dos diabos vindo pra cima de nós!

- E vem emboladas. Não estão se dividindo! – alertou Maoma.

- Formação Triangular! – comandei.

Andora se moveu da ponta sul da estrela e Cármaon da ponta norte e formaram a base do triângulo de frente para o pelotão, com Cármaon no centro. Eu e Iankar nos unimos na outra ponta. As bestas da colina, espécies de lobos cadavéricos, atacaram. Teríamos que eliminá-las tão rápido como o vento, ou nossos companheiros estariam em apuros.

O tempo foi mínimo da nova formação ao impacto. Ouvi as armas cantarem e cortarem pele, músculo e ossos às minhas costas. Ao mesmo tempo, três bestas da colina, sabe-se lá porque, saltaram encima de Iankar e uma veio em minha direção. Iankar rolou por baixo, rasgando a primeira pelo ventre. Eu desci minha espada pela enfrente, barrando a besta que saltou sobre mim, cortando sua cara pelo meio. Desviei para o lado e girei, ao mesmo tempo que Iankar, para enfrentar as demais.

As bestas bateram no chão e, em vez de atacarem nossos companheiros pelas costas, voltaram-se e partiram para cima de Iankar. Compreendi que foram enviadas para matar nosso rastreador. Eliminamos as bestas num piscar de olhos. Enquanto os corpos caiam às nossas costas gorgolejando rosnados ensanguentados, avançamos para a batalha.

O pelotão era formado por grandes orikorns, espécie de demônios inferiores, filhos bastardos de Aracorn com alguma outra maldade qualquer. Tigres e lobos serviam como batedores do pelotão e agora atacavam todos juntos.

Cármaon apresentava uma certa satisfação em sua cara grande e brutal. Seus machados dançavam, rodopiavam e desciam sem parar. Lascas de ossos, partes de crânios, pele e sangue sujo voavam por todos os lados. Em um átimo de congelamento vi tudo aquilo. Iankar havia se encostado em mim e liberado minha visão. Agora eu tinha noção da batalha e dos passos a serem comandados.

Andora e Maoma lutavam dos lados de Cármaon. Proteger, eliminar, liberar. Proteger, eliminar, liberar. Esse era nosso lema: proteger o companheiro a todo custo, eliminar a ameaça e liberar o companheiro para um novo ataque. Éramos bons nisso e isso nos tornava invencíveis. Então partimos para eliminar e liberar. Esse era o próximo passo.

Atacamos os orikorns entre Cármaon e nossas guerreiras, abrindo um espaço suficiente para reorganizarmos.

- Maoma: liberar! – gritei, assumindo o lugar dela.

Maoma retroagiu e correu para a colina, agora às nossas costas. De lá, em segundos, disparou suas flexas. Vi um orikorn tombar à minha frente e outro à minha direita.

- Flecha! – comandei.

Cármaon saltou para a frente, formando a ponta da flecha, Andora e Iankar formaram as arestas, eu o punho. Atacamos.

Essa formação era eficaz diante da desorganização do pelotão inimigo. Tinha ainda outra função: proteger o líder do Grupo dos 8ito. Essa era uma ordem direta do Conselho. Todos ali podiam morrer, eu não. Eu fora designado para ouvir a Profecia e transferi-la para o Conselho, vivo ou morto. Agora tinha que ficar vivo.

Mais inimigos caíram com as flechas de Maoma. Atacamos e derrubamos lobos, tigres e orikons. De repente uma trombeta infernal soou do meio dos orikons ainda de pé. Um som estridente, gutural e chamativo, capaz de trazer até os demônios do inferno. Uma flecha perfurou a garganta do orikon que assoprou a trombeta e o som morreu num ruído desafinado e triste. Mas era tarde.

- Lutem! – berrei um comando. Tínhamos que terminar aquilo e sair dali, ou todos nós morreríamos com a chegada de reforços.

Da colina Maoma assobiou seu canto de aviso: mais inimigos se aproximavam. Derrubamos as bestas restantes e corremos para a colina. Apesar da névoa, vimos vários vultos vindos correndo pela frente.

- Para a esquerda! – ordenei. – Devemos subir a serra ao Sul. O rio está à nossa direita, não podemos ir para lá. Temos que buscar proteção no alto.

Iankar partiu correndo e fomos atrás dele.

A serra se formava à esquerda do vale, alta e cheia de pedras. Sabíamos que seu topo deveria está cheio de sentinelas, especialmente de gorilas enormes, como o que nos atacou mais cedo. O sol já ia alto e estávamos no final da estrada, acredito que a uns 800m da Fortaleza de Vaanda.

Subimos correndo. Logo depois ouvimos urros e uivos no local da batalha. Um silêncio se seguiu, rompido por ordens urradas e tropel de passos em todas as direções.

- Vamos! – ordenei. – Temos que subir ainda mais. Não acredito que sairemos daqui tão cedo se todo o exército nos cercar, mas ficar embaixo será ainda pior. Iankar, procure um esconderijo que nos proteja tanto do alto quando de baixo. Se formos atacados por cima, estaremos condenados.

Mas uma coisa inesperada aconteceu. A névoa densa começou a baixar e a correr em direção à Fortaleza, deixando à mostra o topo das grandes árvores. Subimos ainda mais e nos colocamos de costas para o paredão rochoso, dentro de um nicho mais de 30m da base. Olhando para trás e para baixo, vimos a névoa se recolhendo e deixando o ambiente livre para o sol. É como ver o sol nascer de novo. O topo das árvores estava coberto de gotas de água, como se uma chuva fina tivesse caído durante à noite. Talvez tenha caído ali embaixo, mas não choveu à noite na chapada.

A névoa baixou. E vimos o pior cenário imaginável à nossa frente. A uns 300m, e ao redor de toda a Fortaleza de Vaanda, tudo havia sido destruído. Todas as árvores foram derrubadas e queimadas, o solo estava escavado em um fosso profundo, sobreposto por várias pontes improvisadas, feitas de madeira, pedras e outros restos. A Fortaleza estava protegida por uma grande e poderosa bolha de magia. Grandes torres, com correntes e bolas de ferro penduradas foram erigidas em volta de toda a Fortaleza. Um acampamento de exército circundava todo o ambiente e milhares de bestas guerreiras ocupavam todos os lugares.

- Não é possível! – exclamou Andora. – Eles estão atacando os feitiços com tudo que podem.

- E pelo visto estão fazendo a bolha recuar. – observou Iankar. – Em pouco tempo, se não forem detidos, vão conseguir atingir a Fortaleza.

Eles tinham razão. Era visível o progresso dos exércitos de Aracorn. Estavam espancando a bolha de feitiços fazendo-a recuar. Cada pancada deixava-a menos forte. Para compensar a perca de força, a bolha ia se concentrando, movimento que acabaria assim que ela atingisse a fortaleza e não pudesse mais se concentrar.

Tudo estava parado. Todas as bestas tinham parado para olhar para a serra, onde estávamos.

Mas a coisa mais sinistra estava acontecendo na frente do portão principal da Fortaleza. Uma figura esquelética, com os braços esticados para o alto e a boca escancarada, sugava a névoa que descia para suas entranhas. Aracorn percebera que a névoa tinha começado a nos favorecer e mandara seu escravo removê-la.

A figura esquelética começou a crescer e encher como um balão. Logo seu tamanho ultrapassou a altura das muralhas.

Maoma retirou uma flecha da aljava e a fincou ao seu lado. Retirou de seu cinto uma estopa de fibras naturais enfeitiçadas, embebeu-a num óleo enfeitiçado e atou na ponta da flexa. Recitou o encantamento do fogo, colocou a flexa no arco e se preparou. Cármaon retirou seu isqueiro e ergueu o braço abaixo da ponta da flexa. Ninguém disse nada. Observamos o esquelético mago inchar cada vez mais. Quando a névoa estava a uns 10m ao seu redor, dei ordens:

- Preparem-se!

Cármaon riscou o isqueiro acendendo-o. Encostou a chama na estopa embebida em óleo. Maoma levantou a flecha.

- Agora! – ordenei.

A névoa estava a uns 03m do mago. A flexa flamejante cortou o ar, assobiando, com a chama atiçada pelo vento crescendo constantemente. Segundos depois ouvimos os urros. Bestas guerreiras atiraram-se para o mago, mas já era tarde. Compreenderam tarde a intenção de Maoma.

A flexa flamejante acertou o peito do mago e o incendiou imediatamente. O fogo alastrou como num monte de feno embebido em óleo. O mago urrou, um som oco e gutural. Tentou se mover, tropeçou e tombou para a frente. A grande bola de névoa atingiu várias tendas e o fogo ganhou vida, espalhando-se tão ferozmente que o exército entrou em pânico.

Um estrondo soou do lado da serra, que circundava o lado sul da Fortaleza. O som vinha de um grande tambor. Um urro de comando soou morro abaixo, fazendo o exército se concentrar. Outros urros de comando foram emitidos e o exército começou a se mobilizar. No entanto, um estouro ensurdecedor veio do lado do mago em chamas. Uma explosão que fez o fogo girar, arder e se espalhar ao redor, queimando todas as tendas e tocando o desespero no exército.

Observamos o fogo alastrar ao redor da Fortaleza, consumindo tudo, inclusive a maior parte das bestas guerreiras. O exército, mesmo com as ordens vindas do morro, começou a fugir desordenadamente.

- Lá! – apontou Iankar, com sua visão de falcão. Todos apuramos nossos olhos e vimos, através das chamas e da bolha de feitiços protetores, uma figura verde no topo da torre norte da Fortaleza. Com os braços erguidos, ela comandava alguma coisa. Ao mover os braços e abri-los com força, o fogo terminou de fechar o círculo em torno da bolha e avançou em nossa direção, queimando tudo pela frente. O fogo ganhou a serra e nos atingiu rapidamente, mas não nos queimou.

- “Rápido!” – ouvimos um sussurro através das chamas.

Descemos correndo a serra. 800m era o que nos separava da Fortaleza. Derrubamos as bestas que ainda estavam vivas e tentavam nos atacar. 300m depois adentramos o espaço árido e destruído.  O fogo ali era mais quente e seu bafejo nos fez arfar. Passamos pelos restos do mago, que agora era apenas um esqueleto pequeno envolto em chamas, tentando resistir à morte definitiva e emitindo gritos de terror. Alcançamos a ponte logo depois e atravessamos a bolha. O portão se abriu, entramos, ele bateu forte às nossas costas.

Paramos num pátio largo, para o qual dava uma escada vinda da torre redonda e baixa à frente. Esperamos. De repente apareceu uma figura fantasmagórica. Metida numa longa túnica translúcida, era alta e esguia e flutuava escada abaixo. Seus cabelos cinza desciam até à cintura e seus olhos eram opacos e frios. Ela veio em nossa direção e parou a uns cinco metros de distância.

- “Bem-vindos, o restante dos 8ito!” – exclamou, falando mais para o vento do que para nós. Não teve como não ficar arrepiado. – “Eu sou Vaanda, a Bruxa da Profecia.” – disse, encarando o espanto de todos.

Outra figura desceu a escada, vinda do lado da torre alta. Era a figura vestida de verde que controlara o fogo. Olhamos de uma para a outro. A figura cinzenta virou-se e olhou par trás.

- “Essa é minha filha, Yaanda, a Bruxa que controla os elementos naturais. Como viram, foi ela quem deu vida ao fogo enfeitiçado de Maoma, queimando o exército e dando tempo para vocês entrarem...”

- Se poderia queimá-lo, por quê ainda não havia feito? – interrogou Cármaon impaciente. Antes que eu o repreendesse, Yaanda falou, com sua voz sussurrante:

- “Só posso comandar daqui de dentro feitiços naturais iniciados do lado de fora. O exército de Aracorn percebeu isso logo que chegou aqui. Então parou de usar feitiços naturais e passou a enfeitiçar suas armas com feitiços que não posso comandar”.

- “Cruisal, líder dos 8ito”. – chamou-me Vaanda. – “Finalmente você chegou. É uma pena decepcioná-lo nesta missão, Capitão Guerreiro da Guarda Real. Mas você não será o portador da Profecia”.

Aquilo não estava certo. O Conselho me escolheu e mandou-me exatamente para isso: ouvir e transmitir a profecia, vivo ou morto. Agora ouço que não serei eu a fazer isso?

- Como pode ser isso? Recebi a missão do Conselho e meus companheiros deram suas vidas para me proteger. – indaguei indignado.

- “Entendo sua raiva, Cruisal”. – falou Vaanda. – “Mas o conselho não entende quase nada de minha vida. Olhe para mim. Por que você acha que fiquei assim?”

Não respondi. Ela continuou:

- “Três mil anos se passaram desde que o Conselho do Mundo Nascente me aprisionou nesta Fortaleza. Sozinha. Seus feitiços faziam a erva e a fruta crescerem. Enchiam meu prato e me davam leite dispensando meu esforço. Mas como você acha que ficaria a mente de uma mulher presa sozinha por tanto tempo? O Conselho supôs que eu aguentaria, e me esqueceu. Mas Aracorn não. Há 1500 anos, recebi uma visita inesperada. O Bruxo Komarrá veio me visitar. Espantou-me que ele pudesse se aproximar da barreira de feitiços e atravessá-la sem problemas. Mas, Komarrá era um bruxo digno. Ele criou vários dos feitiços que o Conselho usou para selar minha fortaleza. Não foi problema atravessar a barreira. E sabem o que aconteceu? Eu me apaixonei por ele”.

Impossível! A profecia dizia que Vaanda não poderia se apaixonar. Se isso acontecesse ela deveria morrer para que a profecia se cumprisse. Todos nós olhamos espantados para ela.

- “Eu sei o que estão pensando”. – iisse Vaanda. – “Sim. A profecia dizia a verdade. Com a paixão veio minha gravidez. Eu dei à luz Yaanda. Depois sabia o que tinha que fazer. Mesmo com a contraposição de Komarrá, quando Yaanda nasceu e estava suficientemente grande e segura fiz meu sacrifício. No entanto, descobri que a profecia precisava habitar alguma coisa para sobreviver. Nunca tinha imaginado isso. Para evitar que ela assumisse o corpo de Yaanda, uma feiticeira com muitos poderes, aprisionei meu espírito na Fortaleza. O ódio e o desespero tomaram forma em Komarrá. Aracorn havia plantado ali uma pequena semente. Ela não impediu Kamarrá de entrar em minha fortaleza, porque ainda não tinha força suficiente. Aracorn sabia disso. Mas com o ódio novo e com a raiva, ela cresceu rápido. Alguns anos depois, consumido pelo ódio, Komarrá iniciou a quebra dos feitiços protetores. Teria conseguido, mas nesse tempo Yaanda já tinha desenvolvido muito dos seus poderes. Ela comandou a natureza que expulsou Komarrá de dentro da bolha e o matou na encosta da montanha. Aracorn, mil anos depois, ressuscitou seu antigo servo e o tornou num escravo portador de seu feitiço de névoa. Sim. Komarrá era o mago feiticeiro que vocês queimaram na entrada da Fortaleza”.

A história poderia ser ainda mais longa, mas eu já estava ficando impaciente. Então falei:

- Você disse que não sou o escolhido. Quem então é?

- “A profecia jamais pode ser ouvida e levada por outra pessoa senão eu mesma. O Conselho sabia disso. Mas escolheu esconder isso para que você não desistisse se soubesse a verdade”.

- Que verdade? – interrompeu Maoma bruscamente.

- “Que apenas uma mulher pode ser portadora da profecia”.

Arquejamos com essa revelação. Olhamos para Maoma e Andora. Esta perguntou:

- Então, eu ou Maoma devemos ouvir e levar a profecia ao Conselho?

- “Não”. – respondeu Vaanda. – “Uma de vocês deverá morrer para que meu espírito assuma seu corpo e leve a profecia diretamente ao Conselho. Qual de vocês se oferece para o sacrifício?”

 

 

 

A cor da minha pele no tom da sua voz: vozes plurais das escritoras negras de Minas

Imagem do Google. Gilberto Medeiros    1º Seminário da Afromineiridade do Circuito Lago de Irapé  II Feira de Arte e Cultural de Berilo Beri...