domingo, 20 de novembro de 2022

A cor da minha pele no tom da sua voz: vozes plurais das escritoras negras de Minas


Imagem do Google.
Gilberto Medeiros 
 
1º Seminário da Afromineiridade do Circuito Lago de Irapé 
II Feira de Arte e Cultural de Berilo Berilo, MG, 19 de novembro de 2022.
Bate papo sobre escritoras negras de Minas Gerais 

Literatura Negra 

 A literatura negra é compreendida como a literatura produzida por autores negros, a produção nascida da sua própria subjetividade tendo o autor negro como seu sujeito. “É a partir da subjetividade de negras e negros, de suas vivências e de seu ponto de vista que se tecem as narrativas e poemas” (BRANDINO, 2022) denominados Literatura Negra. O conceito de literatura negra consolidou-se em meados do século XX, com o surgimento e o fortalecimento dos movimentos negros. 

A literatura negra surgiu da subjetividade negra em países que sofreram domínio do poder branco, especialmente aqueles que passaram pela diáspora da escravização e aqueles para onde os negros foram levados como escravos. Na literatura clássica brasileira, por exemplo, dominada pela maioria esmagadora de autores brancos, vê-se o protagonismo de personagens brancos, tendo o negro um lugar relegado ao distanciamento social, tido e representado por estereótipos: a mulata hipersexualizada, o malandro, o negro vitimizado e outros, isso quando não representados apenas como escravos e serviçais, aptos à malandragem como fator natural (Cf. BRANDINO, 2022).

Apenas com a literatura negra as personagens negras saem do “escuro” para retomar sua integridade e tornarem-se protagonistas. É preciso observar que a literatura negra imbui essas personagens de humanidade e resgata sua totalidade enquanto seres humanos, fugindo à fragmentação e à exclusão impostas pelo vicioso círculo de racismo institucionalizado que impregna a literatura de origem branca até então. As rupturas desse círculo têm sido realizadas especialmente pelas suas próprias vítimas.

Fator importante na literatura negra é o resgate dos vínculos com o continente africano, com as origens da fala, da dança, da música, da religiosidade, da composição social, da memória coletiva, da constituição das famílias, da educação e do aprendizado, do amor pela vida etc., próprios dos povos africanos, que são direcionados para a luta por direitos civis dos povos negros e como instrumento de denúncia contra a segregação social. A literatura negra por si mesma é militante. Foi essa “efervescente produção literária a responsável pela afirmação de uma consciência de ser negro” (BRANDINO, 2022). 

A literatura negra não possui uma forma única, mas diversas tendências, o que faz com que se pode falar de “vozes plurais da literatura negra”. Ela transcreve a realidade conforme a época em que é produzida. Além de ser plural, e embora fosse conceituada apenas no século XX, ela aparece, já com bastante força, no século XIX. No Brasil pode-se observa já no século XIX, entre as escritoras, a romancista Maria Firmina dos Reis, maranhense, autora de Úrsula, primeira romancista negra da América Latina. Claro que ganharam mais visibilidade os escritores, alguns sendo embranquecidos até parecer que não eram negros, como é o caso de Machado de Assis. Sendo antiga e plural, a literatura negra teve que criar seus próprios meios de veiculação, visto que lhe era negado espaço nos veículos tradicionais. Entre esses espaços destaca-se o jornal O Homem de Cor, fundado em 1833, e os Cadernos Negros, antologia de poesia e prosa, lançado em 1978. Hoje pode-se falar em uma “imprensa negra”.

A cor da minha pele no tom da sua voz

A literatura negra no Brasil é parte fundamental da cultura nacional. Possui uma diversidade de vozes, estilos e gêneros literários. Ela ganha cada vez mais destaque com o aumento de estudos acadêmicos sobre obras literárias negras e com o espaço ampliado nas mídias sociais no combate ao racismo. Isso faz com que a literatura negra seja a principal representatividade da cor negra da pele das pessoas nas vozes plurais de escritoras e escritores em todo o Brasil.
Carolina de Jesus. Imagem do Google.

Na literatura negra pode-se observar a cadência da dança negra, o som dos tambores, dos batuques, o gingado da capoeira assim como pode-se ouvir os gritos de sofrimento desde os engenhos até as favelas e as camas nas ruas da atualidade, sentir a dor do abandono e do racismo, bem como sentir os cheiros dos temperos, do óleo de dendê, do acarajé, ver a variedade das cores, ouvir a multiplicidade dos sons... A literatura negra traduz a vida das pessoas negras onde quer que elas estejam.

Os autores e autoras negros no Brasil, pela primeira vez, construíram narrativas escritas que deixaram marcas ou vestígios de identidade em seus textos. A partir daí, a literatura negra, que versa sobre absolutamente todos os temas, conta a história da população negra pelo seu próprio viés. Trata-se, então, de uma perspectiva em que os sujeitos negros narram a partir de si, com dignidade e humanidade, expondo, dessa maneira, questões que muitas vezes um olhar branco, exterior, não dá conta. É a cor da pele e a vida das pessoas ganhando espaço na voz de muitos escritores e escritoras.

Vozes plurais das escritoras negras de Minas

Numa perspectiva de dar voz à cor da pele e à vida de pessoas negras, escritoras mineiras ganham vida e produzem obras importantíssimas. Elas são muitas, desde o final do século XIX, pelo menos, até os dias atuais. No entanto, devido à brevidade desta abordagem, serão aqui tratadas apenas algumas delas, começando pela mais antiga.

Carolina de Jesus. Nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, depois mudou-se para São Paulo. Autora do ícone “Quarto de despejo – Diário de uma favelada” (1960), no qual a “autora evidencia a situação marginalizada em que vivia, lutando contra a fome, a sujeira, o racismo entre os moradores da favela e os transeuntes da cidade, entre outras mazelas” (BRANDINO, 2022), viveu extrema pobreza na Favela do Canindé em São Paulo, como catadora de lixo. Em sua humilde casa guardava diários com anotações do dia-a-dia. Foi ali descoberta por um jornalista que divulgou e publicou inicialmente seu trabalho. Foi a primeira escritora negra brasileira a conhecer a fama no mundo editoria. Publicou em vida mais duas obras, “Diário de Bitita” (1986) e “Casa de Alvenaria” (2021) e teve mais de sua obra publicada após morrer. Suas obras já foram traduzidas para mais de 10 países.

Amante da literatura, Carolina Maria de Jesus lia tudo o que recolhia do lixo. O olhar de Carolina sobre o cotidiano é de extrema importância para a compreensão de problemas estruturais como desigualdade social e racismo, que perduram até hoje. Sua obra está carregada de vivências e é um desafio ao sistema que segrega a parte negra da população, o sonho de uma mulher pobre que disse que seria escritora e foi zombada. Quarto de despejo, entre todos os seus livros, oferece uma leitura dura como a vida de Carolina, sente-se a amargura da vida de pobreza na descrição dos fatos do cotidiano, como se para eles não houvesse solução. Carolina sentia o peso daquilo que chama de “principal escravatura atual, a fome”, mais do que qualquer outra mazela pela qual passou.

Conceição Evaristo. Escritora e poetisa, nasceu em BH, viveu grande parte da sua vida na favela Pendura Saia da capital com nove irmão. É conhecida por abordar em suas obras o racismo e a condição da mulher negra no Brasil. “Sua obra elege a mulher negra como a protagonista por excelência, misturando ficção e realidade, num conceito que a autora chamou ‘escrevivências’” (BRANDINO, 2022).

Conceição Evaristo. Imagem do Google.
Já ganhou os principais prêmios literários do país, entre eles o Jabuti em 2015 e teve livros e contos traduzidos para diversas línguas. Estreou na literatura em 1990, divulgando seus poemas em Os Cadernos Negros. É  Doutora em Literatura Comparada e dedica sua pesquisa à crítica de autores negros. No ano de 2003, publicou seu livro “Ponciá Vicêncio” e desde então sua obra tem sido pesquisada no Brasil e no exterior. Suas principais obras são: “Ponciá Vicêncio”, 2003 (romance); “Becos da Memória”, 2006 (romance), “Poemas da recordação e outros movimentos”, 2008 (poesia), “Insubmissas lágrimas de mulheres”, 2011 (contos), “Olhos d’água”, 2014 (contos), “Histórias de leves enganos e parecenças”, 2016 (contos e novela), “Canção para ninar menino grande”, 2018 (romance).
 

As obras da autora têm como matéria-prima literária a vivência das mulheres negras – suas principais protagonistas – e são repletas de “reflexões acerca das profundas desigualdades raciais brasileiras. Misturando realidade e ficção, seus textos são valorosos retratos do cotidiano, instrumentos de denúncia das opressões raciais e de gênero, mas também se voltam para a recuperação da ancestralidade da negritude brasileira” (BRANDINHO, 2018).

Conceição Evaristo cunhou o termo “escrevivência” para descrever sua produção literária: ação que se dá misturando invenção e fato. “‘Escreviver’ é contar, a partir de uma realidade particular, uma história que aponta para uma coletividade” (BRANDINHO, 2018). Segundo a autora, “o sujeito da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação e por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si” (BRANDINHO, 2018). A expressão da coletividade por meio da qual não é possível o sujeito estar sozinho, senão em relação mútua com o outro e este com ele.

Ana Maria Gonçalves. Nascida na cidade de Ibiá, interior de Minas, Ana Maria além de escritora é publicitária. É autora de um dos livros mais procurados e recomendados, principalmente, no meio acadêmico, o romance histórico “Um defeito de cor”, publicado em 2006. O romance conta a história de Kehinde, uma africana capturada ainda criança e trazida como escrava para o Brasil, perpassando sua história até o seu retorno para a África. Além de “Um defeito de cor”, a autora publicou também “Ao lado e à margem do que sentes por mim”, em 2002, seu romance de estreia.

Em sua obra Ana Maria aborda a angústia da sua própria construção identitária enquanto pessoa negra. Afirma que seu processo de aceitação ganhou força e consolidação no UEA, onde pôde apenas ser negra e nada mais, não havendo a necessidade de se assumir negra. A autora diz-se incomodada no mês de novembro quando o racismo torna-se pauta. Afirma: “As minhas crenças não são pauta. Racismo não é pauta.”

Na concepção da autora, a sociedade deve ser composta não por iguais, mas por diversos, onde cada diferente tenha seu lugar. Recomenda a leitura dos filósofos africanos porque “Eles nos dão elementos mais ricos para falar de nós, não sobre nós”, e da filósofa Leda Maria Martins, que mostra como a “nossa memória está no nosso corpo”.

Lavínia Rocha/Lia Rocha. Nascida em BH, começou a escrever aos 11 anos de idade e publicou uma série de livros em pouco tempo: “O mistério da Sala Secreta”, “Um amor em Barcelona”, “De olhos fechados”, “Entre 3 mundos”, “Entre 3 segredos”, “Entre 3 razões”, além de participar das coletâneas “Raízes do Amanhã”, “Flores ao Mar”, “As artes mágicas do Ignoto” e “Amores Improváveis – No colégio”, alinhados ao público infanto-juvenil. Para o público adulto escreveu “Coisas incríveis acontecem” e participado da coletânea “Formas reais de amar”. Atualmente a autora tem 25 anos, é palestrante e discorre sobre sua carreira, feminismo e sobre protagonismo negro. Considera seu vínculo com o ambiente escolar o maior presente que sua carreira lhe deu e aos 17 anos engajou em lutas pelas minorias, como o movimento negro e o feminismo. Seu tema mais recorrente é o protagonismo da mulher negra.

Madu Costa. Educadora e escritora, nascida em BH, Maria do Carmo Ferreira Costa, é reconhecida pelo seu trabalho sobre afrobrasilidade, principalmente para o público infantojuvenil. Pelo menos oito dos seus livros publicados tem protagonistas negros. Para o público infantil é destaque suas obras “Meninas negras” (2010), em que aborda a afirmação identitária do feminino negro para o universo infantil, e “Cadarços desamarrados” (2009), e para o público adulto “Zumbis dos Palmares – Em cordel” (2013). A obra “Embolando Palavras” resgata a experiência entre uma avó e sua neta curiosa e cheia de perguntas. A história mostra que um simples momento entre as duas fazendo bolo pode representar ancestralidade, memória e cultura.

A autora procura difundir e incentivar a leitura e a escrita entre as crianças. “Em suas obras, aborda a afro-brasilidade de diversas maneiras, com o objetivo de difundir a afirmação racial” (LOUZADA e REZENDE, 2018).

Cidinha da Silva. Cidinha da Silva é acadêmica, prosadora e dramaturga. Autora de 11 livros de literatura entre crônicas para adultos, conto e romance para crianças e adolescentes. Destaca-se entre as escritoras e escritores negros de sua geração por dedicar-se à crônica, gênero amplo e diverso que traduz pela palavra o cotidiano vivido. Seus livros mais recentes são “Canções de amor e dengo” (poemas, 2016) e “#Parem de nos matar!” (crônicas, 2016). Organizou duas obras fundamentais sobre as relações raciais contemporâneas no Brasil: “Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras” (2003), um dos dez primeiros livros sobre as ações afirmativas como estratégia de superação das desigualdades raciais, publicados no país, e “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” (2014), obra de referência na temática.

A autora tornou-se escritora excelente depois que começou a publicar artigos acadêmicos sobre relações sociais e de gênero. A partir daí desenvolveu um senso crítico aguçado para falar do racismo do dia a dia. Seu primeiro livro “Cada Tridente em Seu Lugar”, abordou o tema polêmico do acesso e permanência dos negros nas universidades. Em seu livro “Sobre-viventes!”, pode-se perceber sua abordagem crítica numa expressão difícil de ser compreendida: “Ultrapassa o dito com o dizer. Para mim, isso é literatura. Dizer para além do dito. Intencionalmente ocultar para revelar. Revelar ocultando. Nesse jogo, deslinda-se o humano. Mas, humano, é ainda genérico: nesse livro desnudam-se os sobreviventes e os viventes”.

Nilma Lino Gomes. Nascida em BH é graduada em Pedagogia, mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Tornou-se a primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade pública federal, ao ser nomeada reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), em 2013. Em 2015 tornou-se Ministra do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.

A autora consegue mesclar sua escrita entre livros infanto-juvenis e artigos com base em pesquisas de campo feitas por ela para serem estudadas nas universidades. Em 2009, ela lançou a ficção “Betina”, para crianças e jovens, com o intuito de resgatar a identidade dos cabelos afros. Outras obras da autora são: “O menino coração de tambor”, de 2013, “A mulher negra que vi de perto - o processo de construção da identidade racial de professoras negras”, 2003, e “Sem perder a raiz - corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, 2006. Tem se posicionado, frequentemente, na luta contra o racismo no Brasil.

Patrícia Santana. Nascida em BH, Minas Gerais, é escritora e professora da rede municipal de educação da prefeitura de BH, especialista nas temáticas infância quilombola e relações raciais e educação. Ela aborda as vivências dos negros com a discriminação racial. Autora dos livros “Cheirinho de Neném”, “Entremeio sem babado” e “Minha Mãe é Negra Sim”, Patrícia trabalha com questões étnicas e raciais em uma linguagem voltada para o público infantojuvenil.

Etiene Martins. É professora e militante no movimento negro, iniciou sua carreira como repórter da revista Raça Brasil. Foi assessora de comunicação da sexta edição do Festival de Arte Negra em Belo Horizonte e criou o prêmio Afro Sabará e em 2015 o Jornal Afronta. Homenageada no IIIº Destaque Mulher Negra, ocorrido em Belo Horizonte em 2016, em comemoração ao dia 25 de julho, dia de luta da mulher negra.

Etiene é colunista, publicando textos sobre literatura negra, e fundadora da livraria Bantu, especializada em literatura negra.

Em 2017 foi nomeada gerente de Prevenção à Violência e Criminalidade Juvenil pela prefeitura de Belo Horizonte, cargo do qual foi obrigada a se exonerar em 2019, após tornar público o crime de racismo do qual foi vítima por parte de sua chefe que, em mensagem de e-mail, escreveu: “lugar de negra é limpando o chão”.

Maria Mazarello. Editora, nascida em Ponte Nova, Minas Gerais e m 1941, a escritora tem uma longa trajetória no mundo editorial. Fundadora da Mazza Edições, uma das editoras mais importantes do Brasil, Maria Mazarello Rodrigues se baseou na experiência acumulada como uma das fundadoras da Editora do Professor e da Editora Vega, nos anos 1960 e 1970, e, logo após, com o mestrado em editoração realizado em Paris. A Mazza editou publicações sobre alguns dos principais acontecimentos da sociedade brasileira das últimas décadas. Conta em seu catálogo com vasta lista de escritores negros e livros que abordam a cultura afro-brasileira.

Para saber mais

BRANDINO, Luiza. "Literatura negra"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/literatura-negra.htm. Acesso em 17 de novembro de 2022.

http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo. Acesso em 17 nov. 2022.

http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/368-nilma-lino-gomes. Acesso 18 nov. 2022.

https://blogueirasnegras.org/author/patriciasantana/. Acesso em 18 nov. de 2022.

https://brasilescola.uol.com.br/literatura/literatura-negra.htm#:~:text=Entende-se%20por%20literatura%20negra%20a%20produ%C3%A7%C3%A3o%20liter%C3%A1ria%20cujo,se%20tecem%20as%20narrativas%20e%20poemas%20assim%20classificados. Acesso em 17 nov. 2022.

https://laviniarocha.com.br/ Acesso em 18 nov. de 2022.

https://notaterapia.com.br/2022/07/17/15-poetas-negras-brasileiras-contemporaneas-para-voce-conhecer/. Acesso em 17 nov. 2022.

https://theintercept.com/2019/09/19/denunciei-o-racismo-fui-exonerada/. Acesso 17 nov. 2022.

https://ufmg.br/comunicacao/noticias/protagonismo-negro-na-literatura-e-tema-de-debate-em-belo-horizonte. Acesso em 17 nov. 2022.

https://www.culturagenial.com/escritoras-negras/. Acesso em 17 nov. 2022.

https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/11/20/interna_gerais,1102332/consciencia-negra-veja-como-mineiros-contribuem-para-a-luta.shtml. Acesso em 17 nov. 2022.

https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/11/20/interna_gerais,1102332/consciencia-negra-veja-como-mineiros-contribuem-para-a-luta.shtml Acesso 17 nov. 2022.]

https://www.geledes.org.br/15-autoras-negras-da-literatura-brasileira/ Acesso em 17 nov. 2022.

https://www.geledes.org.br/conheca-dez-escritores-de-mg-que-colaboram-com-a-luta-antirracista/. Acesso em 17 nov. 2022..

https://www.geledes.org.br/jornalista-etiene-martins-cria-canal-para-falar-sobre-literatura-negra/ Acesso 17 nov. 2022.

https://www.geledes.org.br/poetas-negras-da-literatura-brasileira/. Acesso em 17 nov. 2022.

https://www.literalmenteuai.com.br/escritoras-mineiras-que-voce-precisa-conhecer/ Acesso em 16 nov. 2022.

https://www.otempo.com.br/diversao/40-escritores-de-minas-gerais-que-voce-precisa-ler-1.2554218. Acesso em 17 nov. 2022.

https://www.todoestudo.com.br/literatura/literatura-negra-no-brasil. Acesso em 17 nov. 2022.

Leia mais em: https://claudia.abril.com.br/cultura/escritoras-negras-brasileiras-que-voce-vai-adorar-conhecer/ Acesso 16 nov. 2022.

LOUZADA, Maitê e REZENDE, João. Madu Costa fala sobre sua trajetória na literatura – entrevista. Disponível em https://ufmg.br/comunicacao/noticias/madu-costa-fala-sobre-sua-trajetoria-na-literatura. Acesso em 18 nov. de 2022.

Veja mais em https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/11/17/evento-origens---apresentacao-ana-maria-goncalves.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 18 nov. de 2022.

Veja mais sobre "Conceição Evaristo" em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/conceicao-evaristo.htm. Acesso em 17 nov. de 2022.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE LEITORES E COMO ME TORNEI UM LEITOR VORAZ

Foto: Nalva Oliveira
Gilberto Medeiros

Ler e escrever estão entre as maiores conquistas da humanidade, vindo logo depois de aprender a andar e se comunicar (fala). No entanto, como toda grande conquista, ler e escrever não é fácil e nem sempre foi acessível à maioria das pessoas. Embora a leitura e a escrita façam parte da história humana há séculos, só no século XX apareceu uma história da leitura. E, mesmo que no início ambas estivessem atreladas, hoje a leitura praticamente independe da escrita, isto é, o público leitor hoje é amplo e não depende de escrever para praticar a leitura, embora seja impossível que quem escreva não leia.

Baseado nos estudos feitos por essa vertente histórica, constatamos que a “prática da leitura” foi muito tímida durante muito tempo e foi “transformando-se de acordo com a construção social de cada uma dessas épocas” (FERNANDES, 2022). Dessa forma, a prática da leitura está atrelada ao suporte da escrita e às pessoas a quem ela se destina. Os suportes serão acessíveis e o público muda conforme a época. Os suportes historicamente mais conhecidos vão das tabuinhas cuneiformes da Mesopotâmia Antiga, “passando por rolos de papiros, códices, escritos em pedra, escritos em couro” (FERNANDES, 2022) até os monitores e telas de computadores modernos. Esses suportes contribuíram para limitar, ou moldar, a prática de leitura em cada período.

O público leitor também variou historicamente. Nas sociedades antigas, em que as práticas de leitura estavam vinculadas ao sacerdócio, aos escribas ou a pessoas ligadas à hierarquia social, era costume a leitura oral, alta, para um público maior de pessoas, com as leituras em praça para anunciar normas legislativas ou nas grandes escolas, como as de Atenas, para um grupo maior de alunos, cujo aprendizado dava-se pela decoração e recitação de trechos ouvidos, como os das epopeias de Homero. Nesse período a leitura não estava associada a algo prazeroso, interessante ou solitário, mas acima de tudo ao trabalho” (LINS, 2020).

A Prática da leitura silenciosa foi desenvolvida pelos monges copistas na Idade Média, que precisavam de um ambiente calmo e silencioso para realizar seu trabalho: copiar, iluminar e resguardar os códices (FERNANDES, 2022). Além da leitura silenciosa, na Idade Média era comum a leitura em pé, curvada sobre o texto, em postura de contemplação do que se lia. Isso faz da leitura algo transcendente. A prática da leitura silenciosa foi estendida com a invenção da prensa, por Gutemberg, no século XV, que facilitou o acesso de um número maior de pessoas aos livros. Estas pessoas, de posse de material extraordinário, faziam suas leituras em casa, de modo silencioso, especialmente para não denunciar a presença de livros em sua residência durante o período em que a Igreja perseguiu a prática secular da produção de livros e autores cujas obras eram censuradas.

No século XVIII ocorrem dois eventos importantes para tornar a prática da leitura popular: o advento do romantismo literário e as feiras de livros em várias cidades europeias. Escritos filosóficos e panfletos políticos foram duas produções literárias que ganharam destaque nesse período. A publicação de livros em periódicos e jornais, no formato seriado, facilitou o acesso da população à leitura (o que favoreceu, por exemplo, a Revolução Francesa de 1789).

No Brasil, apesar dos movimentos ao redor do mundo em prol da leitura, durante todo o período colonial, o período imperial e mesmo em boa parte da República, a prática da leitura, e da escrita, estava restrita a um grupo especial de pessoas. Durante a colonização, apenas os senhores vindos de Portugal recebiam educação tutelada e podiam ler e escrever e até meados do século XIX, praticamente não existiam livros no Brasil. O que se lia, neste período,

eram textos autobiografados, relatos de viajantes, textos escritos manualmente, como cartas, documentos de cartório, e a primeira constituição do império de 1.827, especifica sobre a instrução pública; o código criminal e a bíblia também serviam como manual de leitura nas raras  escolas que existiam (SOUZA FILHO, 2011).

Com a mudança da família real para o Brasil e a exigência comercial, cresceu a necessidade de mão de obra instruída, o que possibilitou a ampliação do ensino da escrita e da leitura. Essa possibilidade, na verdade, assim como outras mudanças, foram exigidas pelas transformações que ocorriam no mundo, como o alcance do poder político pela burguesia em vários países europeus, a Revolução Industrial, a Francesa, a mudança do ponto de vista do homem sobre as coisas com o Renascimento e o Iluminismo, a queda de teorias como o Teocentrismo e o Geocentrismo, sendo substituídas pelo Antropocentrismo e o Heliocentrismo (Cf. SOUZA E FILHO, 2011).

Chegado a esse ponto, constatamos que a prática de leitura é esclarecedora e libertadora e, apesar de não ser fácil e de poder ser incentiva externamente, é pessoal, subjetiva, dependendo de “alguns fatores, como a interpretação e a capacidade de retirar sentidos dos símbolos que ali estão colocados” (LINS, 2020), do contato com material de leitura, do ambiente e do tempo. No dizer de Souza Filho

há de se considerar o lugar de onde as pessoas falam, a imagem que elas têm umas das outras, a posição social dessas pessoas e ainda o que dizem e até o que não dizem dizendo, ou melhor, a questão dos não-ditos. Observando, ainda, principalmente: o contexto sócio-histórico e ideológico no qual esses interlocutores estão inseridos” (SOUZA FILHO, 2011).

A postura também é importante. Ou seja, não é apenas o que se lê, de onde se lê, mas também como se lê que possibilita à pessoa o resultado positivo final. Deste modo, a formação de leitores é uma exigência fundamental para a posição da pessoa na história, no seu meio social e para seu sucesso. É um processo árduo “porque se torna fundamental explorar a imaginação e a capacidade de criar novos cenários” (VINICIUS, 2022).

De tal modo, formar leitores significa possibilitar o acesso de mais pessoas à leitura, que hoje também é tomada como prazer. É ofertar às pessoas, jovens ou não, formas de entrar em contato com outras culturas, outros mundos, de saber o que se passa nas mentalidades dos povos em todo o mundo. É favorecer o acesso a um processo de libertação da mente, de ampliação do conhecimento, de uso da criatividade e da formação crítico-social.

A leitura possibilita viagens a mundos diferentes sem que a pessoa saia do lugar. Ela é o principal fator da formação do pensamento crítico, “pois a pessoa que lê conhece o mundo e conhecendo-o terá condições de atuar sobre ele, modificando-o e tornando-o melhor” (ZUCCA e ALMEIDA, 2019). A leitura tem o poder da democratização da pessoa e, por isso, a formação do leitor é fundamental para a humanidade e deve ser adota e aplicada por todas as pessoas.

Foto: Nalva Oliveira

Em minha prática de leitura, tenho lido quase tudo que se produz na literatura universal e brasileira. Não foi fácil o caminho que trilhei até aqui. Filho de camponeses pobres e analfabetos, meu acesso a conteúdos escritos, durante meu processo educativo inicial, foi bastante restrito, senão quase inexistente. Aprendi a ler e a escrever aos sete anos de idade e a Escola na época não oferecia nenhum material que não as anotações da professora. Meu acesso à leitura começou através dos GIBs (como eram chamadas as Histórias em Quadrinho – HQs – em minha infância). Esses GIBs pertenciam a dois filhos do patrão, em cuja fazenda morávamos. Eles deixavam suas revistas jogadas no quintal e eu as pegava emprestadas. Essa leitura fora extremamente importante para mim e deu início à minha formação de leitor.

Com o tempo passei a comprar meus próprios GIBs, que incluíam os almanaques da Disney e as Revistas de Canan Rei. Quando saí do campo fui embora para Montes Claros e passei a ter acesso aos livros da Biblioteca da EE Deputado Esteves Rodrigues, onde concluí o Ensino Fundamental, já na idade adulta. Li todos os livros que me interessavam naquela biblioteca e ganhei um concurso de poesia organizado pela UNIMONTES. Tive acesso também ao acervo da Biblioteca do Centro Cultural Hermes de Paula, Montes Claros, onde retirava livros semanalmente e passava boa parte do meu tempo estudando. Já no Seminário, tive acesso à biblioteca do mesmo, mais para formação acadêmica. Nesta época já havia me tornado um “leitor voraz”.

Meu maior sonho sempre foi tornar-me escritor e isso impulsionou minha vontade de ler. Quando ainda estava em Montes Claros, comecei a comprar livros e a formar meu acervo pessoal que hoje soma mais de setecentos livros. Sou um leitor de livros impressos, embora cultive a prática da leitura de livros digitais. Cataloguei uma série de escritores internacionais e nacionais, cujas obras estão entre as que mais leio. Desenvolvi também uma ordem para facilitar a leitura: releituras importantes, leituras de autores novos, leituras de obras universais (incluindo minhas áreas de conhecimento e estudo), leituras de autores brasileiros, leituras de autores regionais e locais (tenho uma prateleira só para essa literatura), leituras da literatura LGBTQIA+, leituras da literatura negra, outras literaturas (especialmente das linhas militantes). Manter um padrão de leitura e um planejamento mínimo é importante para focarmos no que estamos lendo e ficar a par do que acontece em todos os lugares. Focar em uma área também é importante, embora não se possa deixar de explorar todas as possibilidades. Pessoalmente aplico-me mais à leitura de romances históricos e construções literárias do fantástico, mas de modo nenhum deixo de mergulhar nas outras áreas da literatura.

Houve anos em que li cerca de 70 a 80 livros. Entre os anos 2017 e 2019, tive esse fluxo de leitura bastante afetado pelos cargos que venho ocupando. Atualmente, especialmente com a pandemia, tenho aumentando significativamente meu ritmo de leitura e ampliado a quantidade de livros que leio.

Foto: Nalva Oliveira

Em suma, a prática da leitura retirou-me do submundo da ignorância e me trouxe à luz do conhecimento, da militância e da democratização da minha pessoa. Com ela ganhou forma a realização do meu sonho mais ambicioso: tornar-me escritor, o que tenho conseguido já com a publicação do meu terceiro livro.

 

TEXTOS CONSULTADOS

FERNANDES, Cláudio. História da Leitura. Disponível em https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/historia-leitura.htm Acesso em 11 jul. 2022.

FILHO E SOUZA, Marinho Celestino de. Breve história da leitura e da escrita. Disponível em http://www.redemebox.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26218:breve-historia-da-leitura-e-da-escrita&catid=282:287&Itemid=21#:~:text=BREVE%20HIST%C3%93RICO%20DA%20LEITURA%20Entre%20n%C3%B3s%20a%20hist%C3%B3ria,descobridores%20e%20benfeitores%2C%20permanecendo%20assim%20por%20longo%20per%C3%ADodo. Publicado em 28 set. 20221, Acesso em 11 jul. 2022.

LINS, Lívia Carvalho Teixeira. História da Leitura. Revista Educação Pública, v. 20, nº 5, 4 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/5/historia-da-leitura. Acesso em 11 jul. 2022.

VINÍCIUS, Paulo. A importância da formação de leitores. Disponível em https://www.ficcoeshumanas.com.br/post/a-import%C3%A2ncia-da-forma%C3%A7%C3%A3o-de-leitores. Acessado em 11 jul. 2022.

ZUCCA, Viviane Chagas. ALMEIDA, Roseli Maria Rosa. A Leitura e a sua importância: Formação de Leitores no 3° ano do Ensino Fundamental. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 09, Vol. 05, pp. 36-53. Setembro de 2019. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/formacao-de-leitores.

Palestra ministrada nas atividades do Clube de Leitores da EE Benício Prates
13 de julho de 2022 


INDICAÇÃO DE LEITURA SOBRE O TEMA DA PALESTRA

 

Livros

Os desafios da escrita – Roger Chartier

História da Leitura – Steven Roger Fischer e Cláudia Freire

Uma história da leitura – Alberto Manguel e Pedro Maia Soares

A formação da leitura no Brasil – Marisa Lajolo e Regina Zilberman

 

Textos da minha autoria

Ser escritor em tempos de multimídia

Escritores de Coração de Jesus e suas batalhas

Ubirajara Alves Macedo: o autor através do tempo

Todos disponíveis no meu blogger https://historiaehipermidia.blogspot.com/.

 

Como me encontrar

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quinta-feira, 7 de abril de 2022

O menino que vive o inverno


Gilberto Medeiros

Imagem do autor.
O sol se levantou sobre a cidade, os raios rebrilhando nos telhados disformes do casario irregular. O vento de inverno rodopia pelas ruas, levantando canudos de poeira, enchendo de terra os olhos de quem sai cedo para trabalhar. O frio passa pelas roupas chegando à pele. O corpo entra em batalha para se proteger e anseia por algo quente e gostoso. 

O inverno é cruel ali. Seca a pela e racha os lábios. A gripe é sua companheira incansável e os chás são insuficientes. As casas estão sempre cheias de terra, que desliza por debaixo das portas e pelas frestas das janelas e telhados. Não é raro acordar com pó sobre as cobertas.

O menino levantou cedo. À altura de seus dezessete anos, precisa trabalhar para ajudar a mãe. O corpo cansado, dorido e moído resiste ao impulso de se levantar. Cambaleando, ele sai da cama, olhos caindo de sono e cabeça zonza. Olha, quase sem ver, os cadernos e livros escolares num canto do quarto, passa por eles e vai para o banheiro. Estuda à noite, no EJA. Está com sérios problemas na escola. Não está aprendendo direito e isso lhe traz tristeza e fadiga. Se passaram dois anos de ensino à distância por causa da pandemia e agora os professores entraram em greve reivindicando salários melhores.

Ele desce a rua, roupas sujas do trabalho dos dias anteriores, um boné na cabeça e a mão cobrindo os olhos para evitar que se encham de poeira. Na sacola leva sua marmita com a comida dormida e uma pequena garrafa de café. Só voltará para casa no fim da tarde. Hoje não vai à escola, pois que não tem professores. Irá jogar bola na quadra sintética do bairro e depois sentar-se num pé de muro, com outros meninos, para cutucarem seus telefones celulares, rirem das bobagens da internet e comentarem nos posts de alguma garota ou garoto.

O menino volta para casa, sujo do serviço e do jogo de bola. Toma bênção da mãe, que, sozinha, assiste à televisão a novela do horário. Ele entra no banheiro e se lava, a água suja escorrendo pelo piso de cimento grosso e descendo pelo ralo. Com água caindo na cabeça e descendo pelo corpo, sonha com outra vida, em que tem dinheiro, carro, casa bonita, que pode ir à praia e encher a mãe de presentes. Sorri com seus sonhos e seca-se em sua toalha encardida.

Ao sair do banheiro, volta à sua humilde realidade, quase miserável. Passa pela mãe em frente à televisão, que lhe diz que a janta está pronta. No quarto, senta-se na cama estreita, com colchão puído e quase acabado. No canto há um guarda-roupas de duas portas, velho e com as gavetas destroçadas. Uma caixa no chão abriga, num amontoado disforme, as coisas que não cabem no guarda-roupas. Um lençol ralo cobre a cama, encimada por um travesseiro duro. Sobre os pés da mesma, seu cobertor antigo e cheio de bolinhas.

O menino suspira dolorosamente. Toma seu celular, com a bateria relaxada, e acessa o wi-fi do vizinho. Passa meia hora cutucando o aparelho, quando sua mãe o chama e diz que vá jantar e se deitar, porque precisa se levantar cedo para trabalhar.

Ele então sai do quarto, deixando, relutantemente, o celular com o cabo na tomada. Na cozinha, sem ver direito o que tem ali, pega o prato, coloca a comida e volta para o quarto. Com o prato nos joelhos e o telefone novamente nas mãos, come alternando colheradas, que engole sem mastigar direito, e acesso aos posts em seus apps.

As janelas de latão da casa estão fechadas. O vento as sacode, produzindo ruídos constantes e irritantes. Mesmo que a mãe coloque nelas calços de pano e pedaços de chinelos velhos, o ruindo não acaba. Do lado de fora o vento canta e a poeira sobe. O sol já se pôs há muito tempo. São quase vinte e uma horas. O menino deita o prato no chão e se deita na cama, enfiando os pés debaixo do cobertor velho para evitar o resfriamento agressivo dos mesmos. A mãe ralha, e o manda ir guardar o prato e escovar os dentes. Ele deixa-se deitar por uns vinte minutos, cutucando seu celular, quando a mãe grita. Então ele se levanta sem coragem, pega o prato e leva junto o telefone. Desta vez senta-se na mesa da cozinha, sem olhar ao redor e se põe a navegar pela internet.

O vento está ativo e frio do lado de fora da casa. São já dez horas da noite. A mãe do menino desligou a televisão e veio mandar-lhe deitar porque já era tarde. Ele pediu a bênção e foi para seu quarto. Passou pelo banheiro, escovou os dentes, usou o vaso e bebeu água da pia com as mãos. Deitado na cama estreita, cobriu-se e colocou de novo o celular no carregador. Não conseguiria dormir tão cedo, acostumado que estava em chegar tarde depois das aulas. Não há, em sua casa, livros de literatura, e se tivesse, não os leria.

À noite sonhou que andava pela capoeira. Folhas secas estalavam sob seus pés e o cheiro da resina das aroeiras impregnava suas narinas. Envolto num casaco grande e quente, subia uma elevação, o ar de sua boca condensando numa névoa fina à sua frente. Vestido em roupas quentes e uma touca na cabeça, chegou no topo da elevação e viu o sol nascer ao longe, dourando os campos abaixo. A água, no estreito rio no fundo do vale, tomou colorações belíssimas e os caniços às margens se agitaram com o vento.

O menino acordou, tremendo, as mãos entre as pernas, os pés gelados e o rosto queimando de frio. Enrolou-se em seu cobertor e tentou dormir, mas já eram seis da manhã. Ouviu a mãe sair da cama, andando devagar, entrar e sair do banheiro, voltar ao quarto e ir para a cozinha. O rádio na cozinha foi ligado e uma música qualquer entrou pela casa.

O menino sabia que tinha que se levantar. Vestiu as roupas sujas e duras de frio. Calçou suas botas rotas, enfiou o boné na cabeça, banhou o rosto na água gelada da pia e entrou na cozinha. A mãe já havia feito o café, posto na garrafa pequena e estava colocando na marmita a comida que esquentara. Tomou a bênção do filho que se sentou à cabeceira da mesa para tomar seu café com farinha de milho. Olhou as coisas na cozinha, quase nada, e se esforçou para não se entristecer ainda mais.

O dia tinha chegado outra vez. O menino estava na rua. Havia tomado a bênção da mãe e saído de casa. Na sacola levava a marmita com a comida esquentada e uma pequena garrafa de café. Vestido com as roupas sujas dos dias de trabalho, um boné na cabeça, cobria os olhos com a mão para que não se enchesse de terra levantada pelo vento frio que rodava pela rua. Atrás dele, o sol subia no céu, seus raios iluminando os tetos irregulares enquanto empurrava a sombra por entre o casario disforme.

O menino teve a sensação de que vive profundamente o próprio inverno.

 

 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A Lagoa Feia

 

                                        Gilberto Medeiros

Foto: Cristiano Cazarotto e Sandra Doyama

O velho Jotaci rolou na cama pela última vez. Antes de dar seu suspiro final, da altura de seus cento e dois anos de idade, relembrou a história mais importante de sua vida.

***

Aos doze anos, Jotaci caminhou pela vereda da Sesmaria em direção à cacimba onde a mãe lavava roupa e de onde retiravam água para beber, se banhar e dar aos bichos. Aquela cacimba servia a todas as famílias que viviam ali, no meio da chapada. Embora houvesse chuvas nos tempos certos e águas nas cabeceiras, naquele lugar, onde as famílias encontraram segurança para fazerem suas casas, aquela era a única cacimba. Aquela cacimba era, constantemente, meio de disputas entre as mulheres.

O sol descia calmo numa tarde quente no serrado. Jotaci voltava da baixa onde havia ido pescar, no rio da Sesmaria, e tirar a caças das arapucas. Carregando seu feixe de peixes no ombro e dependuradas pelos pés, na embira que usava como cinto, as codornas que pegara em suas arapucas, Jotaci ouviu, de longe, os rumores da briga das mulheres pela água da cacimba. Distinguiu, acima de todas, a voz de sua mãe: grave, alta e contínua. Acelerou os passos, pois conhecia bem sua mãe para saber que, em pouco tempo, partiria para agressão física contra as companheiras lavadeiras.

- A sua rôpa parece mais suja do que a de todo mundo! Está aí lavando o dia inteiro e nunca caba! – eram os brados de sua mãe.

- Só ocê que sabe disso, Maria Sabe Tudo! – bradou a vizinha em resposta – Caçadera de confusão com tudo que é gente daqui.

- Caçadera de confusão é minha mão na sua fuça, se não tirar essas rôpa daí logo pra eu lavar as minhas!

- Cumadis! – chamou a outra vizinha – Vamo pará cum isso? Essa cacimba é de nós tudo. Não há porque vivê briganu pela água, que é de Deus, dada pra nós todos. Gente! Vamo pará!

- Adianta não, cumadi – disse a primeira vizinha. – essa sabidona aí acha cá cacimba e a água é tudo só dela. Essa dona de tudo!

- Não é só minha não... – começou de novo a mãe de Jotaci, quando viu o filho se aproximar.

Jotaci chegou e entrou no meio de todas. Sua mãe calou-se, com os olhos arregalados e engolindo a raiva e a explosão iminente. Ajuntou suas roupas, jogou no tacho na beira da cacimba, sacudiu as saias, virou-se em direção à sua casa e foi embora, gritando para o filho:

- Vamimbora, Jotaci, que só vive no mundo! – bradou ela. – Amanhã volto pra lavar minha rôpa, se essa gente aí deixá alguma água limpa na cacimba. – arrancou pisando forte e tomando a trilha para casa.

Não era do feitio dela armar brigas na frente dos filhos, e isso era a salvação de suas vizinhas. Jotaci sabia que levaria uns tapas quando chegasse em casa, por ter interferido na briga, mas isso ainda era melhor do que deixar a mãe causar mais escândalo.

No dia seguinte, a mãe fez Jotaci se levantar bem cedo para irem terminar de lavar a roupa. Era seu castigo pela interferência na briga com as vizinhas.

Com as orelhas inchadas dos puxões da mãe no dia anterior e aborrecido pelos tapas que levou, ele levantou-se, tomou um café ralo com um barranco da comida do jantar, e se dirigiu ao local. Ao chegar, não viu a cacimba, objeto das disputas. No lugar da mesma havia uma enorme lagoa, do tamanho de sete campos de futebol. O tacho da mãe estava dependurado na beira da lagoa, mas quando ele tentou agarrá-lo pela alça, o tacho escorregou e sumiu na água.

Jotaci voltou correndo para casa, gritando para a mãe:

- Mãe: onde havia a cacimba, agora há uma lagoa feia!

- Ocê tá besta, menino! Dondé que tirou isso? – indagou a mãe.

- Tem sim! Vai lá pra Sinhora vê. – disse ele, tremendo e apontando para o local da cacimba.

Sua mãe saiu correndo para o local e logo começou a gritar para todo mundo ouvir:

- Gente! Gente, de Deus! Corre aqui! Corre aqui, pelamordedeus!

- Que qui foi, Cumadi? – veio correndo a vizinha.

- Num há mais cacimba, Cumadi! Sumiu tudo. Tem uma lagoa feia de grande no lugar da cacimba. Corre aqui pra sinhora vê!

Toda a vizinhança estava presente em um instante para testemunhar o acontecimento. O espanto foi tanto que todo mundo começou a chamar o lago de Lagoa Feia. O nome se tornou oficial e o grande lago ficou famoso na região.

***

Jotaci cresceu contando essa história e vendo as lendas da Lagoa Feia ganharem proporções diferentes nos oitenta anos que se seguiram. Quando de sua idade avançada, morando na cidade, contou aos seus netos a história acrescida da seguinte lenda:

- A Lagoa Feia fica no topo da chapada da Sesmaria e, quando a pessoa sobe lá e olha para o outro lado do vale, para as bandas de Santa da Pedra, vê um cruzeiro enorme e branco, de braços abertos para a lagoa. Dizem que nos braços do cruzeiro está escrito: “Andaremos, andaremos até que um dia nos encontraremos”. Desse jeito, quando a lagoa quebrar tudo, derrubar toda a terra e se encontrar com o cruzeiro, o mundo vai acabar.

Jotaci concluiu seus pensamentos e fechou os olhos para sempre.

***

Este pequeno conto, em nada uma história, foi baseado nas lendas surgidas em torno da formação da Lagoa Feia, um límpido e lindo lago azul que se encontra no meio da chapada de Sesmaria, no município de Coração de Jesus, MG, e objetiva contar, de modo diferente, a mesma estória repetida milhares de vezes pelos populares locais, dotando-a de elementos que, embora subjacentes às lendas, possam, agora, serem percebidos através dos curtos diálogos aqui apresentados. Foram escolhidas as narrativas mais populares e presentes até hoje para composição do conto. Existem, no entanto, outras variantes menos conhecidas, inclusive a que diz ter sido um vaqueiro quem testemunhou o surgimento da Lagoa Feia, a partir do desabamento do solo, que carregou para o fundo da terra o grande círculo de buritis e todo o mato e bichos ali presentes. Mas, mesmo esta lenda da conta de que a exclamação final, que deu nome à lagoa, foi a mesma: “Tia!... O poço do buritizeiro virou uma lagoa feia...!” – teria dito o vaqueiro à sua tia ao voltar, atordoado, à choupana em que morava.

As lendas ao redor desse feito são variadas, embora todas concordem na existência de uma cacimba, ou pequeno poço, conhecida e utilizada por quem ali perto morava, a qual veio a se tornar um grande lago. Embora a lenda pertença à memória popular dos povos colonizadores é possível que tenha suas origens em narrativas indígenas mais antigas.

Em relação ao fato de haver moradores na chapada perto do lago no período colonial, isso não se comprova historicamente, embora também não se possa, de todo, negar, visto que, na época, as moradas eram construídas, normalmente, nas várzeas, perto da água e dos lugares de plantação. As moradias aqui colocadas foram apenas para dar mais realismo ao conto.

Em termos geológicos, a Lagoa Feia foi formada por uma dolina e é milenar. As próprias narrativas populares dão conta disso: um pequeno poço, cujos solo e flora ao seu redor, num rápido e largo rompimento, foram levados abaixo, formando o grande lago. Ninguém sabe ao certo quando sua formação ocorreu. As formações de dolina não são raras no município. Na própria região da Lagoa feia existe mais de uma marca de dolinas que, com o passar dos séculos, desapareceram.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O Grupo dos 8ito e a Profecia de Vaanda


Gilberto Medeiros

Imagem: Gilberto Medeiros. Print lua cheia - série Shanara.







Imagem: Gilberto Medeiros. Print lua cheia - série Shanara.

O sol finalmente nasceu.

Começou a subir a Leste, às nossas costas. De cima da vereda, olhávamos o vale abaixo: longo, negro como as entranhas dos infernos, e frio. O sol fazia o negrume da noite se recolher do Oeste, mas o vale continuava coberto por uma névoa cinzenta e compacta. Não se via nada abaixo dela, senão formas de grandes aglomerados arbóreos. O rio corria à direita e desaparecia nas entranhas do vale. A mais ou menos 3km estava escondida a fortaleza da bruxa que viemos encontrar.

Do meu lado direito estavam Andora e Cármaon, e do esquerdo, Iankar e Maoma, quatro dos capitães selecionados para essa missão. Éramos agora cinco, dos 8ito que partimos de Kânion para Vaikar. Perdemos três companheiros, mortos e devorados pelas monstruosidades que nos atacaram. E isso não era brincadeira, tratando-se de quem somos: capitães testados em batalhas e expedições perigosas contra monstros, feiticeiros, magos ou bruxos capazes de dizimarem uma aldeia inteira num ataque de poder.

- Eu não acredito! – exclamou Andora. – Imaginei que este vale estivesse limpo. Mas olha isso: continua debaixo da mesma maldita névoa! Tão escura quanto se fosse noite.

- O feitiço de encobrimento foi lançado por Aracorn, o pior dos magos feiticeiros que existe. – comentou Cármaon. – Não é um feitiço que se desfaz com a luz do sol. Ele deve cobrir o vale inteiro...

 - Então o maldito feiticeiro realmente sabe? – interrogou Maoma.

- Não importa. – cortei a conversa. – Aracorn sabe quem somos e o que viemos fazer aqui, mas o mais importante é estamos preparados. Temos que descer o vale de um jeito ou de outro.

Iankar começou a descer sem dizer nenhuma palavra. Seu instinto natural de rastreador o fizera o melhor nessa categoria entre os rastreadores do Mundo Nascente.

Todos nós sobrevivemos à custa de muita luta na noite anterior. Agora que o sol apareceu, podíamos nos ver: cheios de cicatrizes e cobertos de sangue e líquido escuro vasados de monstros guerreiros mortos.

Encontrar a Bruxa Vaanda era nossa missão. Ela era portadora da Profecia que revelava como destruir Abssoul, o maior inimigo dos povos do Mundo Nascente, quando ele escapasse de Bulgorn, o exílio para onde foi mandando após sua derrota nas Guerras Primais, há dez mil anos.

As lendas sobre as batalhas de dez mil anos viviam entre os povos do Mundo Nascente. No entanto, muito de sua força havia se perdido, até que Aracorn nascera, há três mil anos. Seu nascimento trouxe temores e fez nascer a profecia da morte de Abssoul. Magos, feiticeiros, sábios, bruxas e grandes líderes retomaram os estudos e debates sobre as guerras antigas e concluíram que Aracorn era cria de Abssoul.

Mandado para preparar o retorno de seu progenitor, Aracorn começou a eliminar todos os que se lhe opunham. Quando descobriram a profecia de Vaanda, o Conselho do Mundo Nascente criou uma fortaleza em Vaikar e a isolaram ali, cercada de poderosas barreiras enfeitiçadas que impediram, por muito tempo, Aracorn de a encontrar e matar.

Mas, três mil anos se passaram e parte da profecia se perdeu. Durante esse tempo, Aracorn replanejou suas ações, ficando quase escondido. No entanto, agora os horrores recomeçaram e, de um jeito ou de outro, ele descobriu o paradeiro de Vaanda e vinha tentando destruí-la. Então o Conselho do Mundo Nascente se reuniu e escolheu oito dos seus melhores capitães para encontrarem a fortaleza de Vaanda, recuperarem a profecia e levá-la de volta a Kânion. Foi então formado o Grupo dos 8ito.

Dos oitos capitães escolhidos, cinco descíamos o escuro e frio vale para Vaikar. Iankar ia à frente, silencioso como uma sombra. Rastreia uma trilha ou estrada. Usa espadas curtas e emblema de falcão no peitoral da armadura. Iankar consegue ver mesmo na névoa densa. Uma das habilidades mais importantes de um rastreador é sua visão. Quando é aprovado em seu treinamento final, recebe o Feitiço da Visão, que o possibilita enxergar mesmo no mais escuro breu.

Sou um capitão treinado e líder desta equipe. A 300 anos ocupo o cargo de Capitão da Guarda Real de Kânion. Minha responsabilidade é manter minha equipe segura e viva, se puder. Distribuo os guerreiros conforme seu grau de importância, de rapidez e força. Iankar, como deve ser, vai à frente. Maoma segue-lhe. A Capitã arqueira está no lugar de onde pode atirar tanto para a frente quanto para trás sem ser atingida logo depois. Eu venho em seguida. Esta posição me é garantida por ser o líder do grupo e pelo meu papel nesta missão. Depois de mim vem Andora, a Capitã espadachim que toca terror em qualquer inimigo. No final da fila vem Cármaon, o Capitão cavaleiro que luta com machados. Cármaon é grande e assustador. Sua força ultrapassa a de dois de nós juntos e sua ferocidade numa batalha tanto encoraja seus companheiros quanto aterroriza seus inimigos.

A 300 metros abaixo, Iankar encontra a trilha. Para no meio dela, olhando para a direita e depois para a esquerda com a testa franzida. Já estamos todos na trilha e compreendemos imediatamente sua desconfiança: a trilha é uma estrada bem usada. Não tão larga para passar um carro, mas aberta o suficiente para passar vários guerreiros enfileirados rapidamente. Há rastros nas duas direções. Pés grandes e pesados. Animais de guerra estão usando a estrada constantemente. Isso não deveria ser assim.

- Há soldados inimigos acampados aqui perto. – Iankar fala pela primeira vez, o rosto fechado e os olhos de falcão iluminados por uma raiva repentina.

- Sim. E com toda certeza soldados de Aracorn. – falo para todos.

- Então as informações de que esteja tentando matar Vaanda são verdadeiras. – completa Maoma.

- Infelizmente podemos afirmar que sim. – digo. – Não foi à toa que Camaaz sempre defendeu que deveríamos ter estabelecido um posto avançado nesta região para guardar a fortaleza.

- E o Conselho sempre afirmou que os feitiços eram suficientes. – rosnou Cármaon com seu costumeiro mal humor. – Que manter Vaanda longe das atenções era a melhor forma de protegê-la.

- Talvez tenha sido durante muitos anos, mas Aracorn não só descobriu seu esconderijo como usou o descuido do Conselho a seu favor.

- Mas ainda não a capturou, do contrário, já teria marchado contra Kânion. – concluiu Andora, que se mantivera calada até agora.

- Não. Não a capturou. – digo. – Os feitiços são muito poderosos para serem derrubados facilmente. Aracorn, no entanto, não é tolo e é um demônio poderoso, se não for impedido, vai derrubá-los em algum momento. Agora entendo porque descobriu tão cedo que vínhamos.

Todos havíamos alimentado a suspeita de que alguém nos havia traído em Kânion, pois apenas três dias após partir fomos perseguidos por caçadores de Aracorn. Nossos companheiros morreram nos 12 dias que se seguiram e uma trilha de corpos de todo tipo de criatura ficou pelo caminho. Na noite anterior fomos atingidos pela névoa escura do feitiço de Aracorn. Agora todos sabíamos porque ele descobriu: na verdade, estava esperando por isso e vinha observando Kânion há muito tempo. A tolice do Conselheiro tinha dado a ele uma vantagem grande e perigosa.

- Temos que continuar. Precisamos ter cuidado. Os perigos agora são mais próximos e em maior quantidade se há um acampamento aracorniano aqui. – digo.

Retomamos nossa marcha, mais rápidos e mais atentos. Depois de uns 500 metros, ouvimos o barulho. Um rugido estrondoso, gutural e longo. Sacamos nossas armas e começamos a correr com a ligeireza de nosso treinamento. O tropel soou logo atrás de nós. Paramos e estacamos. A fera apareceu na estrada com as presas à mostra, rosnando e saltando numa velocidade alarmante. Uma flecha assobiou sobre nossas cabeças e cravou entre o pescoço e a omoplata do tigre besta guerreiro. O animal tropeçou para a frente, girou no ar e remeteu de costas em nossa direção, quando outra flecha perfurou sua coluna, fazendo-o desequilibra-se completamente, tombar de costas e rolar para nossos pés. Em segundos os machados de Cármaon deceparam seu pescoço. Ficamos parados por uns segundos, ouvindo e observando enquanto o sangue escuro e mal cheiroso jorrava do corpo e da cabeça da besta morta.

- Vamos! – ordenei e recomeçamos a correr.

Aquele era apenas um batedor. Logo estaríamos sendo atacados. A primeira função de um batedor é dar sinal de que a presa foi encontrada, depois, se ela fugir, atacá-la a fim de atrasá-la e matar quem pudesse.

Aquele tigre é um dos muitos animais escravizados, depois mortos e por fim ressuscitados por Aracorn como bestas guerreiras. Um exército daquelas bestas estava em algum lugar ao nosso redor. A julgar pela distância que ainda nos encontrávamos da Fortaleza de Vaanda, ele estava à nossa frente e um pelotão vinha logo atrás, já que o batedor nos achou vindo de trás. Exército ou pelotão, qualquer um dos dois seria uma desgraça naquele lugar. Mas não poderíamos parar e tínhamos que alcançar Vaanda de um jeito ou de outro.

Corremos. Fomos treinados para lutar em qualquer lugar e em qualquer situação e para vencermos longas distâncias correndo em pouco tempo. Aquela estrada estava limpa, resultado da confiança estremada de quem liderava a tentativa de matar Vaanda. Tinha certeza de que não seria descoberto antes de finda sua empreitada. Apesar dos quinze dias de caminhada e dos doze dias de luta, nossos corpos estavam bem. Mantínhamos nossa força e nossa mente controladas, nossas cicatrizes curavam-se rápido. Tudo isso era devido não só ao treinamento, mas também aos feitiços que nos envolvem e à comida feita com produtos trabalhados para manter o corpo saudável, altamente curável e forte. No entanto, não impede que sejamos mortos.

Minutos depois ouvimos um uivo vindo de trás. O pelotão havia encontrado a carcaça do tigre. Seguiram-se outros uivos, em tom de comando. Ainda não veio nada da frente ou de outro lugar. Mas o que quer que viesse de trás vinha rápido.

- Mais rápido! – comandei e aceleramos.

Iankar corria como se estivesse flutuando. Maoma, eu e Andora mal tocávamos os pés no chão, mas Cármaon fazia seus enormes pés ressoarem na estrada. Seu peso e seu tamanho, no entanto, não o impediam de ser tão veloz quanto qualquer um de nós. No fundo mantínhamos a ordem e a velocidade suficientes para deixar nossos perseguidores à distância, mas não tão rápidos que nos pudesse meter numa armadilha antes de a percebermos.

A estrada bifurcou logo adiante. Iankar seguiu pela direita sem pestanejar. Ninguém questionou. Estamos tão acostumados a confiar em nossos rastreadores que quase nunca os questionamos. Iankar nunca erra e nos últimos quinze dias tem nos mantido no caminho certo e nos livrado de quase tudo que vem pela frente.

Uma coisa parecia mudada: as indicações do Conselho do local da Fortaleza de Vaanda. Era visível que o exército aracorniano interferira no ambiente, fisicamente e com feitiços. A névoa era apenas um deles. Mas não de modo a destruir todas as nossas referências. Já havíamos percorrido mais de 1km desde que o sol nascera. Tínhamos esperança de percorrer pelo menos a metade dessa distância sem ser notados. Agora, no entanto, estávamos preparados para sermos atacados a qualquer momento. E isso não demorou.

Um vulto enorme saltou da elevação à esquerda direto para cima de Iankar. O guerreiro embolou-se e rolou no chão tão rápido como uma pedra atirada. O símio uivou de frustração, bateu suas enormes patas no chão e girou, braços longos estendidos em nossa direção. Logo depois curvou-se para trás num grito terrível de dor. As facas de Iankar perfuraram suas costas uma após a outra. Eu e Andora atacamos com nossas espadas. Andora usava espada longa e afiada que segurou com as duas mãos e perfurou o ventre da besta. A besta curvou-se para a frente e recebeu minha espada, que entrou por baixo do queixo e enterrou em seu crânio. Cármaon cortou a perna esquerda da besta, fazendo-a vir abaixo. Saltei paro o lado e para cima, girando e arrastando a espada que se soltou. Enquanto o símio tombava, aceleramos para a frente. Mudamos nossa formação com Maoma, que nem mexeu um dedo nessa luta, correndo na frente. Maoma reduzira o tamanho de seu arco e o prendera às costas. Flechas seriam pouco usadas agora, mas o arco, encurtado, formava uma arma tão perigosa quando uma espada, com cortes nas duas extremidades. Corria agora com sua espada de uma mão e uma adaga. Suas flechas estavam presas às costas e outras adagas e facas em seu sinto, botas e sabe-se lá mais aonde. Todos nós usávamos mais de um tipo de arma e mais de uma arma iam presas aos nossos corpos.

Iankar assumiu a posição logo atrás de Maoma. Com ela correndo na frente, a função dele agora era observar mais à distância e acima dos montes e nos alertar de qualquer perigo percebido. Aquele símio estava muito bem escondido para que Iankar não o percebesse. Na retaguarda, Andora e Cármaon estavam em silêncio e concentrados. Eram peritos em ouvir à distância e estavam auscultando a retaguarda. Segundos depois ouvimos os uivos. Acharam o símio morto. Nossa luta nos atrasou o suficiente para permitir que o pelotão se aproximasse perigosamente.

- Temos que acelerar, ou vão enfiar os focinhos em nossos traseiros já, já! – advertiu Cármaon, com seu tom de humor que sempre usava no meio do perigo.

- Não. Temos que manter o ritmo e a cautela. – respondi. – Temos perigo vindo de todos os lados agora. Precisamos estar seguros quando tivermos que lutar pra valer.

- E temos que chegar vivos em Vaanda! – gritou Andora, que detestava a ideia de ser morta no meio de qualquer missão.

- Falou mom capitã e minha senhorrita perrigôssa! – brincou Cármaon, com a imitação de um sotaque inexistente, mas que todo mundo usa.

Todos sorrimos. Cármaon sabia como era importante manter um grupo de guerreiros animados. Mesmo sendo todos nós grandes guerreiros, aquela missão já havia dado em nossos nervos mais de uma vez.

Um assobio fino e baixo fez com que parássemos. Iankar deu o sinal e apontou para a colina mais à frente. Vultos se posicionavam no topo dela.

- 10. – disse ele. – Maoma? – indagou.

Maoma já havia liberado seu arco e posto nele uma flecha.

- Flechas triplas. – pediu Iankar.

Ela então retirou mais duas flechas e as colocou na corda. Iankar encostou seu dedo no ombro dela e liberou sua visão. As três flechas cantaram no ar e derrubaram três bestas na colina. Logo em seguida mais três flechas cortaram o ar e três novos corpos tombaram e rolaram colina abaixo. As bestas restantes não esperaram outra saraivada. Partiram em nossa direção uivando e rosnando. Maoma girou para trás e nós fechamos a frente para o impacto. Um uivo veio detrás e ouvimos uma flecha zunir. Antes que as bestas chegassem pela frente, nos abrimos numa formação estrela e nos preparamos.

- Inferno de Drocorn! – xingou Cármaon de sua posição às minhas costas. – São mais de 30 bestas dos diabos vindo pra cima de nós!

- E vem emboladas. Não estão se dividindo! – alertou Maoma.

- Formação Triangular! – comandei.

Andora se moveu da ponta sul da estrela e Cármaon da ponta norte e formaram a base do triângulo de frente para o pelotão, com Cármaon no centro. Eu e Iankar nos unimos na outra ponta. As bestas da colina, espécies de lobos cadavéricos, atacaram. Teríamos que eliminá-las tão rápido como o vento, ou nossos companheiros estariam em apuros.

O tempo foi mínimo da nova formação ao impacto. Ouvi as armas cantarem e cortarem pele, músculo e ossos às minhas costas. Ao mesmo tempo, três bestas da colina, sabe-se lá porque, saltaram encima de Iankar e uma veio em minha direção. Iankar rolou por baixo, rasgando a primeira pelo ventre. Eu desci minha espada pela enfrente, barrando a besta que saltou sobre mim, cortando sua cara pelo meio. Desviei para o lado e girei, ao mesmo tempo que Iankar, para enfrentar as demais.

As bestas bateram no chão e, em vez de atacarem nossos companheiros pelas costas, voltaram-se e partiram para cima de Iankar. Compreendi que foram enviadas para matar nosso rastreador. Eliminamos as bestas num piscar de olhos. Enquanto os corpos caiam às nossas costas gorgolejando rosnados ensanguentados, avançamos para a batalha.

O pelotão era formado por grandes orikorns, espécie de demônios inferiores, filhos bastardos de Aracorn com alguma outra maldade qualquer. Tigres e lobos serviam como batedores do pelotão e agora atacavam todos juntos.

Cármaon apresentava uma certa satisfação em sua cara grande e brutal. Seus machados dançavam, rodopiavam e desciam sem parar. Lascas de ossos, partes de crânios, pele e sangue sujo voavam por todos os lados. Em um átimo de congelamento vi tudo aquilo. Iankar havia se encostado em mim e liberado minha visão. Agora eu tinha noção da batalha e dos passos a serem comandados.

Andora e Maoma lutavam dos lados de Cármaon. Proteger, eliminar, liberar. Proteger, eliminar, liberar. Esse era nosso lema: proteger o companheiro a todo custo, eliminar a ameaça e liberar o companheiro para um novo ataque. Éramos bons nisso e isso nos tornava invencíveis. Então partimos para eliminar e liberar. Esse era o próximo passo.

Atacamos os orikorns entre Cármaon e nossas guerreiras, abrindo um espaço suficiente para reorganizarmos.

- Maoma: liberar! – gritei, assumindo o lugar dela.

Maoma retroagiu e correu para a colina, agora às nossas costas. De lá, em segundos, disparou suas flexas. Vi um orikorn tombar à minha frente e outro à minha direita.

- Flecha! – comandei.

Cármaon saltou para a frente, formando a ponta da flecha, Andora e Iankar formaram as arestas, eu o punho. Atacamos.

Essa formação era eficaz diante da desorganização do pelotão inimigo. Tinha ainda outra função: proteger o líder do Grupo dos 8ito. Essa era uma ordem direta do Conselho. Todos ali podiam morrer, eu não. Eu fora designado para ouvir a Profecia e transferi-la para o Conselho, vivo ou morto. Agora tinha que ficar vivo.

Mais inimigos caíram com as flechas de Maoma. Atacamos e derrubamos lobos, tigres e orikons. De repente uma trombeta infernal soou do meio dos orikons ainda de pé. Um som estridente, gutural e chamativo, capaz de trazer até os demônios do inferno. Uma flecha perfurou a garganta do orikon que assoprou a trombeta e o som morreu num ruído desafinado e triste. Mas era tarde.

- Lutem! – berrei um comando. Tínhamos que terminar aquilo e sair dali, ou todos nós morreríamos com a chegada de reforços.

Da colina Maoma assobiou seu canto de aviso: mais inimigos se aproximavam. Derrubamos as bestas restantes e corremos para a colina. Apesar da névoa, vimos vários vultos vindos correndo pela frente.

- Para a esquerda! – ordenei. – Devemos subir a serra ao Sul. O rio está à nossa direita, não podemos ir para lá. Temos que buscar proteção no alto.

Iankar partiu correndo e fomos atrás dele.

A serra se formava à esquerda do vale, alta e cheia de pedras. Sabíamos que seu topo deveria está cheio de sentinelas, especialmente de gorilas enormes, como o que nos atacou mais cedo. O sol já ia alto e estávamos no final da estrada, acredito que a uns 800m da Fortaleza de Vaanda.

Subimos correndo. Logo depois ouvimos urros e uivos no local da batalha. Um silêncio se seguiu, rompido por ordens urradas e tropel de passos em todas as direções.

- Vamos! – ordenei. – Temos que subir ainda mais. Não acredito que sairemos daqui tão cedo se todo o exército nos cercar, mas ficar embaixo será ainda pior. Iankar, procure um esconderijo que nos proteja tanto do alto quando de baixo. Se formos atacados por cima, estaremos condenados.

Mas uma coisa inesperada aconteceu. A névoa densa começou a baixar e a correr em direção à Fortaleza, deixando à mostra o topo das grandes árvores. Subimos ainda mais e nos colocamos de costas para o paredão rochoso, dentro de um nicho mais de 30m da base. Olhando para trás e para baixo, vimos a névoa se recolhendo e deixando o ambiente livre para o sol. É como ver o sol nascer de novo. O topo das árvores estava coberto de gotas de água, como se uma chuva fina tivesse caído durante à noite. Talvez tenha caído ali embaixo, mas não choveu à noite na chapada.

A névoa baixou. E vimos o pior cenário imaginável à nossa frente. A uns 300m, e ao redor de toda a Fortaleza de Vaanda, tudo havia sido destruído. Todas as árvores foram derrubadas e queimadas, o solo estava escavado em um fosso profundo, sobreposto por várias pontes improvisadas, feitas de madeira, pedras e outros restos. A Fortaleza estava protegida por uma grande e poderosa bolha de magia. Grandes torres, com correntes e bolas de ferro penduradas foram erigidas em volta de toda a Fortaleza. Um acampamento de exército circundava todo o ambiente e milhares de bestas guerreiras ocupavam todos os lugares.

- Não é possível! – exclamou Andora. – Eles estão atacando os feitiços com tudo que podem.

- E pelo visto estão fazendo a bolha recuar. – observou Iankar. – Em pouco tempo, se não forem detidos, vão conseguir atingir a Fortaleza.

Eles tinham razão. Era visível o progresso dos exércitos de Aracorn. Estavam espancando a bolha de feitiços fazendo-a recuar. Cada pancada deixava-a menos forte. Para compensar a perca de força, a bolha ia se concentrando, movimento que acabaria assim que ela atingisse a fortaleza e não pudesse mais se concentrar.

Tudo estava parado. Todas as bestas tinham parado para olhar para a serra, onde estávamos.

Mas a coisa mais sinistra estava acontecendo na frente do portão principal da Fortaleza. Uma figura esquelética, com os braços esticados para o alto e a boca escancarada, sugava a névoa que descia para suas entranhas. Aracorn percebera que a névoa tinha começado a nos favorecer e mandara seu escravo removê-la.

A figura esquelética começou a crescer e encher como um balão. Logo seu tamanho ultrapassou a altura das muralhas.

Maoma retirou uma flecha da aljava e a fincou ao seu lado. Retirou de seu cinto uma estopa de fibras naturais enfeitiçadas, embebeu-a num óleo enfeitiçado e atou na ponta da flexa. Recitou o encantamento do fogo, colocou a flexa no arco e se preparou. Cármaon retirou seu isqueiro e ergueu o braço abaixo da ponta da flexa. Ninguém disse nada. Observamos o esquelético mago inchar cada vez mais. Quando a névoa estava a uns 10m ao seu redor, dei ordens:

- Preparem-se!

Cármaon riscou o isqueiro acendendo-o. Encostou a chama na estopa embebida em óleo. Maoma levantou a flecha.

- Agora! – ordenei.

A névoa estava a uns 03m do mago. A flexa flamejante cortou o ar, assobiando, com a chama atiçada pelo vento crescendo constantemente. Segundos depois ouvimos os urros. Bestas guerreiras atiraram-se para o mago, mas já era tarde. Compreenderam tarde a intenção de Maoma.

A flexa flamejante acertou o peito do mago e o incendiou imediatamente. O fogo alastrou como num monte de feno embebido em óleo. O mago urrou, um som oco e gutural. Tentou se mover, tropeçou e tombou para a frente. A grande bola de névoa atingiu várias tendas e o fogo ganhou vida, espalhando-se tão ferozmente que o exército entrou em pânico.

Um estrondo soou do lado da serra, que circundava o lado sul da Fortaleza. O som vinha de um grande tambor. Um urro de comando soou morro abaixo, fazendo o exército se concentrar. Outros urros de comando foram emitidos e o exército começou a se mobilizar. No entanto, um estouro ensurdecedor veio do lado do mago em chamas. Uma explosão que fez o fogo girar, arder e se espalhar ao redor, queimando todas as tendas e tocando o desespero no exército.

Observamos o fogo alastrar ao redor da Fortaleza, consumindo tudo, inclusive a maior parte das bestas guerreiras. O exército, mesmo com as ordens vindas do morro, começou a fugir desordenadamente.

- Lá! – apontou Iankar, com sua visão de falcão. Todos apuramos nossos olhos e vimos, através das chamas e da bolha de feitiços protetores, uma figura verde no topo da torre norte da Fortaleza. Com os braços erguidos, ela comandava alguma coisa. Ao mover os braços e abri-los com força, o fogo terminou de fechar o círculo em torno da bolha e avançou em nossa direção, queimando tudo pela frente. O fogo ganhou a serra e nos atingiu rapidamente, mas não nos queimou.

- “Rápido!” – ouvimos um sussurro através das chamas.

Descemos correndo a serra. 800m era o que nos separava da Fortaleza. Derrubamos as bestas que ainda estavam vivas e tentavam nos atacar. 300m depois adentramos o espaço árido e destruído.  O fogo ali era mais quente e seu bafejo nos fez arfar. Passamos pelos restos do mago, que agora era apenas um esqueleto pequeno envolto em chamas, tentando resistir à morte definitiva e emitindo gritos de terror. Alcançamos a ponte logo depois e atravessamos a bolha. O portão se abriu, entramos, ele bateu forte às nossas costas.

Paramos num pátio largo, para o qual dava uma escada vinda da torre redonda e baixa à frente. Esperamos. De repente apareceu uma figura fantasmagórica. Metida numa longa túnica translúcida, era alta e esguia e flutuava escada abaixo. Seus cabelos cinza desciam até à cintura e seus olhos eram opacos e frios. Ela veio em nossa direção e parou a uns cinco metros de distância.

- “Bem-vindos, o restante dos 8ito!” – exclamou, falando mais para o vento do que para nós. Não teve como não ficar arrepiado. – “Eu sou Vaanda, a Bruxa da Profecia.” – disse, encarando o espanto de todos.

Outra figura desceu a escada, vinda do lado da torre alta. Era a figura vestida de verde que controlara o fogo. Olhamos de uma para a outro. A figura cinzenta virou-se e olhou par trás.

- “Essa é minha filha, Yaanda, a Bruxa que controla os elementos naturais. Como viram, foi ela quem deu vida ao fogo enfeitiçado de Maoma, queimando o exército e dando tempo para vocês entrarem...”

- Se poderia queimá-lo, por quê ainda não havia feito? – interrogou Cármaon impaciente. Antes que eu o repreendesse, Yaanda falou, com sua voz sussurrante:

- “Só posso comandar daqui de dentro feitiços naturais iniciados do lado de fora. O exército de Aracorn percebeu isso logo que chegou aqui. Então parou de usar feitiços naturais e passou a enfeitiçar suas armas com feitiços que não posso comandar”.

- “Cruisal, líder dos 8ito”. – chamou-me Vaanda. – “Finalmente você chegou. É uma pena decepcioná-lo nesta missão, Capitão Guerreiro da Guarda Real. Mas você não será o portador da Profecia”.

Aquilo não estava certo. O Conselho me escolheu e mandou-me exatamente para isso: ouvir e transmitir a profecia, vivo ou morto. Agora ouço que não serei eu a fazer isso?

- Como pode ser isso? Recebi a missão do Conselho e meus companheiros deram suas vidas para me proteger. – indaguei indignado.

- “Entendo sua raiva, Cruisal”. – falou Vaanda. – “Mas o conselho não entende quase nada de minha vida. Olhe para mim. Por que você acha que fiquei assim?”

Não respondi. Ela continuou:

- “Três mil anos se passaram desde que o Conselho do Mundo Nascente me aprisionou nesta Fortaleza. Sozinha. Seus feitiços faziam a erva e a fruta crescerem. Enchiam meu prato e me davam leite dispensando meu esforço. Mas como você acha que ficaria a mente de uma mulher presa sozinha por tanto tempo? O Conselho supôs que eu aguentaria, e me esqueceu. Mas Aracorn não. Há 1500 anos, recebi uma visita inesperada. O Bruxo Komarrá veio me visitar. Espantou-me que ele pudesse se aproximar da barreira de feitiços e atravessá-la sem problemas. Mas, Komarrá era um bruxo digno. Ele criou vários dos feitiços que o Conselho usou para selar minha fortaleza. Não foi problema atravessar a barreira. E sabem o que aconteceu? Eu me apaixonei por ele”.

Impossível! A profecia dizia que Vaanda não poderia se apaixonar. Se isso acontecesse ela deveria morrer para que a profecia se cumprisse. Todos nós olhamos espantados para ela.

- “Eu sei o que estão pensando”. – iisse Vaanda. – “Sim. A profecia dizia a verdade. Com a paixão veio minha gravidez. Eu dei à luz Yaanda. Depois sabia o que tinha que fazer. Mesmo com a contraposição de Komarrá, quando Yaanda nasceu e estava suficientemente grande e segura fiz meu sacrifício. No entanto, descobri que a profecia precisava habitar alguma coisa para sobreviver. Nunca tinha imaginado isso. Para evitar que ela assumisse o corpo de Yaanda, uma feiticeira com muitos poderes, aprisionei meu espírito na Fortaleza. O ódio e o desespero tomaram forma em Komarrá. Aracorn havia plantado ali uma pequena semente. Ela não impediu Kamarrá de entrar em minha fortaleza, porque ainda não tinha força suficiente. Aracorn sabia disso. Mas com o ódio novo e com a raiva, ela cresceu rápido. Alguns anos depois, consumido pelo ódio, Komarrá iniciou a quebra dos feitiços protetores. Teria conseguido, mas nesse tempo Yaanda já tinha desenvolvido muito dos seus poderes. Ela comandou a natureza que expulsou Komarrá de dentro da bolha e o matou na encosta da montanha. Aracorn, mil anos depois, ressuscitou seu antigo servo e o tornou num escravo portador de seu feitiço de névoa. Sim. Komarrá era o mago feiticeiro que vocês queimaram na entrada da Fortaleza”.

A história poderia ser ainda mais longa, mas eu já estava ficando impaciente. Então falei:

- Você disse que não sou o escolhido. Quem então é?

- “A profecia jamais pode ser ouvida e levada por outra pessoa senão eu mesma. O Conselho sabia disso. Mas escolheu esconder isso para que você não desistisse se soubesse a verdade”.

- Que verdade? – interrompeu Maoma bruscamente.

- “Que apenas uma mulher pode ser portadora da profecia”.

Arquejamos com essa revelação. Olhamos para Maoma e Andora. Esta perguntou:

- Então, eu ou Maoma devemos ouvir e levar a profecia ao Conselho?

- “Não”. – respondeu Vaanda. – “Uma de vocês deverá morrer para que meu espírito assuma seu corpo e leve a profecia diretamente ao Conselho. Qual de vocês se oferece para o sacrifício?”

 

 

 

A cor da minha pele no tom da sua voz: vozes plurais das escritoras negras de Minas

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