quinta-feira, 7 de abril de 2022

O menino que vive o inverno


Gilberto Medeiros

Imagem do autor.
O sol se levantou sobre a cidade, os raios rebrilhando nos telhados disformes do casario irregular. O vento de inverno rodopia pelas ruas, levantando canudos de poeira, enchendo de terra os olhos de quem sai cedo para trabalhar. O frio passa pelas roupas chegando à pele. O corpo entra em batalha para se proteger e anseia por algo quente e gostoso. 

O inverno é cruel ali. Seca a pela e racha os lábios. A gripe é sua companheira incansável e os chás são insuficientes. As casas estão sempre cheias de terra, que desliza por debaixo das portas e pelas frestas das janelas e telhados. Não é raro acordar com pó sobre as cobertas.

O menino levantou cedo. À altura de seus dezessete anos, precisa trabalhar para ajudar a mãe. O corpo cansado, dorido e moído resiste ao impulso de se levantar. Cambaleando, ele sai da cama, olhos caindo de sono e cabeça zonza. Olha, quase sem ver, os cadernos e livros escolares num canto do quarto, passa por eles e vai para o banheiro. Estuda à noite, no EJA. Está com sérios problemas na escola. Não está aprendendo direito e isso lhe traz tristeza e fadiga. Se passaram dois anos de ensino à distância por causa da pandemia e agora os professores entraram em greve reivindicando salários melhores.

Ele desce a rua, roupas sujas do trabalho dos dias anteriores, um boné na cabeça e a mão cobrindo os olhos para evitar que se encham de poeira. Na sacola leva sua marmita com a comida dormida e uma pequena garrafa de café. Só voltará para casa no fim da tarde. Hoje não vai à escola, pois que não tem professores. Irá jogar bola na quadra sintética do bairro e depois sentar-se num pé de muro, com outros meninos, para cutucarem seus telefones celulares, rirem das bobagens da internet e comentarem nos posts de alguma garota ou garoto.

O menino volta para casa, sujo do serviço e do jogo de bola. Toma bênção da mãe, que, sozinha, assiste à televisão a novela do horário. Ele entra no banheiro e se lava, a água suja escorrendo pelo piso de cimento grosso e descendo pelo ralo. Com água caindo na cabeça e descendo pelo corpo, sonha com outra vida, em que tem dinheiro, carro, casa bonita, que pode ir à praia e encher a mãe de presentes. Sorri com seus sonhos e seca-se em sua toalha encardida.

Ao sair do banheiro, volta à sua humilde realidade, quase miserável. Passa pela mãe em frente à televisão, que lhe diz que a janta está pronta. No quarto, senta-se na cama estreita, com colchão puído e quase acabado. No canto há um guarda-roupas de duas portas, velho e com as gavetas destroçadas. Uma caixa no chão abriga, num amontoado disforme, as coisas que não cabem no guarda-roupas. Um lençol ralo cobre a cama, encimada por um travesseiro duro. Sobre os pés da mesma, seu cobertor antigo e cheio de bolinhas.

O menino suspira dolorosamente. Toma seu celular, com a bateria relaxada, e acessa o wi-fi do vizinho. Passa meia hora cutucando o aparelho, quando sua mãe o chama e diz que vá jantar e se deitar, porque precisa se levantar cedo para trabalhar.

Ele então sai do quarto, deixando, relutantemente, o celular com o cabo na tomada. Na cozinha, sem ver direito o que tem ali, pega o prato, coloca a comida e volta para o quarto. Com o prato nos joelhos e o telefone novamente nas mãos, come alternando colheradas, que engole sem mastigar direito, e acesso aos posts em seus apps.

As janelas de latão da casa estão fechadas. O vento as sacode, produzindo ruídos constantes e irritantes. Mesmo que a mãe coloque nelas calços de pano e pedaços de chinelos velhos, o ruindo não acaba. Do lado de fora o vento canta e a poeira sobe. O sol já se pôs há muito tempo. São quase vinte e uma horas. O menino deita o prato no chão e se deita na cama, enfiando os pés debaixo do cobertor velho para evitar o resfriamento agressivo dos mesmos. A mãe ralha, e o manda ir guardar o prato e escovar os dentes. Ele deixa-se deitar por uns vinte minutos, cutucando seu celular, quando a mãe grita. Então ele se levanta sem coragem, pega o prato e leva junto o telefone. Desta vez senta-se na mesa da cozinha, sem olhar ao redor e se põe a navegar pela internet.

O vento está ativo e frio do lado de fora da casa. São já dez horas da noite. A mãe do menino desligou a televisão e veio mandar-lhe deitar porque já era tarde. Ele pediu a bênção e foi para seu quarto. Passou pelo banheiro, escovou os dentes, usou o vaso e bebeu água da pia com as mãos. Deitado na cama estreita, cobriu-se e colocou de novo o celular no carregador. Não conseguiria dormir tão cedo, acostumado que estava em chegar tarde depois das aulas. Não há, em sua casa, livros de literatura, e se tivesse, não os leria.

À noite sonhou que andava pela capoeira. Folhas secas estalavam sob seus pés e o cheiro da resina das aroeiras impregnava suas narinas. Envolto num casaco grande e quente, subia uma elevação, o ar de sua boca condensando numa névoa fina à sua frente. Vestido em roupas quentes e uma touca na cabeça, chegou no topo da elevação e viu o sol nascer ao longe, dourando os campos abaixo. A água, no estreito rio no fundo do vale, tomou colorações belíssimas e os caniços às margens se agitaram com o vento.

O menino acordou, tremendo, as mãos entre as pernas, os pés gelados e o rosto queimando de frio. Enrolou-se em seu cobertor e tentou dormir, mas já eram seis da manhã. Ouviu a mãe sair da cama, andando devagar, entrar e sair do banheiro, voltar ao quarto e ir para a cozinha. O rádio na cozinha foi ligado e uma música qualquer entrou pela casa.

O menino sabia que tinha que se levantar. Vestiu as roupas sujas e duras de frio. Calçou suas botas rotas, enfiou o boné na cabeça, banhou o rosto na água gelada da pia e entrou na cozinha. A mãe já havia feito o café, posto na garrafa pequena e estava colocando na marmita a comida que esquentara. Tomou a bênção do filho que se sentou à cabeceira da mesa para tomar seu café com farinha de milho. Olhou as coisas na cozinha, quase nada, e se esforçou para não se entristecer ainda mais.

O dia tinha chegado outra vez. O menino estava na rua. Havia tomado a bênção da mãe e saído de casa. Na sacola levava a marmita com a comida esquentada e uma pequena garrafa de café. Vestido com as roupas sujas dos dias de trabalho, um boné na cabeça, cobria os olhos com a mão para que não se enchesse de terra levantada pelo vento frio que rodava pela rua. Atrás dele, o sol subia no céu, seus raios iluminando os tetos irregulares enquanto empurrava a sombra por entre o casario disforme.

O menino teve a sensação de que vive profundamente o próprio inverno.

 

 

A cor da minha pele no tom da sua voz: vozes plurais das escritoras negras de Minas

Imagem do Google. Gilberto Medeiros    1º Seminário da Afromineiridade do Circuito Lago de Irapé  II Feira de Arte e Cultural de Berilo Beri...