quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A Lagoa Feia

 

                                        Gilberto Medeiros

Foto: Cristiano Cazarotto e Sandra Doyama

O velho Jotaci rolou na cama pela última vez. Antes de dar seu suspiro final, da altura de seus cento e dois anos de idade, relembrou a história mais importante de sua vida.

***

Aos doze anos, Jotaci caminhou pela vereda da Sesmaria em direção à cacimba onde a mãe lavava roupa e de onde retiravam água para beber, se banhar e dar aos bichos. Aquela cacimba servia a todas as famílias que viviam ali, no meio da chapada. Embora houvesse chuvas nos tempos certos e águas nas cabeceiras, naquele lugar, onde as famílias encontraram segurança para fazerem suas casas, aquela era a única cacimba. Aquela cacimba era, constantemente, meio de disputas entre as mulheres.

O sol descia calmo numa tarde quente no serrado. Jotaci voltava da baixa onde havia ido pescar, no rio da Sesmaria, e tirar a caças das arapucas. Carregando seu feixe de peixes no ombro e dependuradas pelos pés, na embira que usava como cinto, as codornas que pegara em suas arapucas, Jotaci ouviu, de longe, os rumores da briga das mulheres pela água da cacimba. Distinguiu, acima de todas, a voz de sua mãe: grave, alta e contínua. Acelerou os passos, pois conhecia bem sua mãe para saber que, em pouco tempo, partiria para agressão física contra as companheiras lavadeiras.

- A sua rôpa parece mais suja do que a de todo mundo! Está aí lavando o dia inteiro e nunca caba! – eram os brados de sua mãe.

- Só ocê que sabe disso, Maria Sabe Tudo! – bradou a vizinha em resposta – Caçadera de confusão com tudo que é gente daqui.

- Caçadera de confusão é minha mão na sua fuça, se não tirar essas rôpa daí logo pra eu lavar as minhas!

- Cumadis! – chamou a outra vizinha – Vamo pará cum isso? Essa cacimba é de nós tudo. Não há porque vivê briganu pela água, que é de Deus, dada pra nós todos. Gente! Vamo pará!

- Adianta não, cumadi – disse a primeira vizinha. – essa sabidona aí acha cá cacimba e a água é tudo só dela. Essa dona de tudo!

- Não é só minha não... – começou de novo a mãe de Jotaci, quando viu o filho se aproximar.

Jotaci chegou e entrou no meio de todas. Sua mãe calou-se, com os olhos arregalados e engolindo a raiva e a explosão iminente. Ajuntou suas roupas, jogou no tacho na beira da cacimba, sacudiu as saias, virou-se em direção à sua casa e foi embora, gritando para o filho:

- Vamimbora, Jotaci, que só vive no mundo! – bradou ela. – Amanhã volto pra lavar minha rôpa, se essa gente aí deixá alguma água limpa na cacimba. – arrancou pisando forte e tomando a trilha para casa.

Não era do feitio dela armar brigas na frente dos filhos, e isso era a salvação de suas vizinhas. Jotaci sabia que levaria uns tapas quando chegasse em casa, por ter interferido na briga, mas isso ainda era melhor do que deixar a mãe causar mais escândalo.

No dia seguinte, a mãe fez Jotaci se levantar bem cedo para irem terminar de lavar a roupa. Era seu castigo pela interferência na briga com as vizinhas.

Com as orelhas inchadas dos puxões da mãe no dia anterior e aborrecido pelos tapas que levou, ele levantou-se, tomou um café ralo com um barranco da comida do jantar, e se dirigiu ao local. Ao chegar, não viu a cacimba, objeto das disputas. No lugar da mesma havia uma enorme lagoa, do tamanho de sete campos de futebol. O tacho da mãe estava dependurado na beira da lagoa, mas quando ele tentou agarrá-lo pela alça, o tacho escorregou e sumiu na água.

Jotaci voltou correndo para casa, gritando para a mãe:

- Mãe: onde havia a cacimba, agora há uma lagoa feia!

- Ocê tá besta, menino! Dondé que tirou isso? – indagou a mãe.

- Tem sim! Vai lá pra Sinhora vê. – disse ele, tremendo e apontando para o local da cacimba.

Sua mãe saiu correndo para o local e logo começou a gritar para todo mundo ouvir:

- Gente! Gente, de Deus! Corre aqui! Corre aqui, pelamordedeus!

- Que qui foi, Cumadi? – veio correndo a vizinha.

- Num há mais cacimba, Cumadi! Sumiu tudo. Tem uma lagoa feia de grande no lugar da cacimba. Corre aqui pra sinhora vê!

Toda a vizinhança estava presente em um instante para testemunhar o acontecimento. O espanto foi tanto que todo mundo começou a chamar o lago de Lagoa Feia. O nome se tornou oficial e o grande lago ficou famoso na região.

***

Jotaci cresceu contando essa história e vendo as lendas da Lagoa Feia ganharem proporções diferentes nos oitenta anos que se seguiram. Quando de sua idade avançada, morando na cidade, contou aos seus netos a história acrescida da seguinte lenda:

- A Lagoa Feia fica no topo da chapada da Sesmaria e, quando a pessoa sobe lá e olha para o outro lado do vale, para as bandas de Santa da Pedra, vê um cruzeiro enorme e branco, de braços abertos para a lagoa. Dizem que nos braços do cruzeiro está escrito: “Andaremos, andaremos até que um dia nos encontraremos”. Desse jeito, quando a lagoa quebrar tudo, derrubar toda a terra e se encontrar com o cruzeiro, o mundo vai acabar.

Jotaci concluiu seus pensamentos e fechou os olhos para sempre.

***

Este pequeno conto, em nada uma história, foi baseado nas lendas surgidas em torno da formação da Lagoa Feia, um límpido e lindo lago azul que se encontra no meio da chapada de Sesmaria, no município de Coração de Jesus, MG, e objetiva contar, de modo diferente, a mesma estória repetida milhares de vezes pelos populares locais, dotando-a de elementos que, embora subjacentes às lendas, possam, agora, serem percebidos através dos curtos diálogos aqui apresentados. Foram escolhidas as narrativas mais populares e presentes até hoje para composição do conto. Existem, no entanto, outras variantes menos conhecidas, inclusive a que diz ter sido um vaqueiro quem testemunhou o surgimento da Lagoa Feia, a partir do desabamento do solo, que carregou para o fundo da terra o grande círculo de buritis e todo o mato e bichos ali presentes. Mas, mesmo esta lenda da conta de que a exclamação final, que deu nome à lagoa, foi a mesma: “Tia!... O poço do buritizeiro virou uma lagoa feia...!” – teria dito o vaqueiro à sua tia ao voltar, atordoado, à choupana em que morava.

As lendas ao redor desse feito são variadas, embora todas concordem na existência de uma cacimba, ou pequeno poço, conhecida e utilizada por quem ali perto morava, a qual veio a se tornar um grande lago. Embora a lenda pertença à memória popular dos povos colonizadores é possível que tenha suas origens em narrativas indígenas mais antigas.

Em relação ao fato de haver moradores na chapada perto do lago no período colonial, isso não se comprova historicamente, embora também não se possa, de todo, negar, visto que, na época, as moradas eram construídas, normalmente, nas várzeas, perto da água e dos lugares de plantação. As moradias aqui colocadas foram apenas para dar mais realismo ao conto.

Em termos geológicos, a Lagoa Feia foi formada por uma dolina e é milenar. As próprias narrativas populares dão conta disso: um pequeno poço, cujos solo e flora ao seu redor, num rápido e largo rompimento, foram levados abaixo, formando o grande lago. Ninguém sabe ao certo quando sua formação ocorreu. As formações de dolina não são raras no município. Na própria região da Lagoa feia existe mais de uma marca de dolinas que, com o passar dos séculos, desapareceram.

5 comentários:

  1. Na verdade. A lagoa feia e muito bonita , fui lá ainda criança , não me lembro o ano , mas eu estive lá , naquela época não tinha como registra esse momento lindo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim. É uma linda lagoa. Hoje é um dos nossos maiores atrativos turísticos.

      Eliminar
    2. Era uma linda Lagoa ,mais hj os poderes públicos não ser olhar pra ela está se acabando, a Lagoa feia hj pede socorro se os fazendeiros que retira água dela não para de retirada absurda dela não dura mais de 10 ano ,ela já secou mais de 30 metros de profundidade em 8 anos

      Eliminar
  2. Eu não conhecia essas histórias. Muito interessante. E concordo que a Lagoa Feia é bonita demais!

    ResponderEliminar
  3. São lendas que fazem parte da memória da população há muitos anos. Eu cresci ouvindo essas estórias. Hoje posso reescrevê-las para que mais pessoas tenham acesso. E a Lagoa Feia é maravilhosa.

    ResponderEliminar

A cor da minha pele no tom da sua voz: vozes plurais das escritoras negras de Minas

Imagem do Google. Gilberto Medeiros    1º Seminário da Afromineiridade do Circuito Lago de Irapé  II Feira de Arte e Cultural de Berilo Beri...