Gilberto
Medeiros
![]() |
Imagem do autor. |
O inverno é cruel ali. Seca
a pela e racha os lábios. A gripe é sua companheira incansável e os chás são
insuficientes. As casas estão sempre cheias de terra, que desliza por debaixo
das portas e pelas frestas das janelas e telhados. Não é raro acordar com pó
sobre as cobertas.
O menino levantou cedo. À
altura de seus dezessete anos, precisa trabalhar para ajudar a mãe. O corpo
cansado, dorido e moído resiste ao impulso de se levantar. Cambaleando, ele sai
da cama, olhos caindo de sono e cabeça zonza. Olha, quase sem ver, os cadernos
e livros escolares num canto do quarto, passa por eles e vai para o banheiro. Estuda
à noite, no EJA. Está com sérios problemas na escola. Não está aprendendo direito
e isso lhe traz tristeza e fadiga. Se passaram dois anos de ensino à distância
por causa da pandemia e agora os professores entraram em greve reivindicando
salários melhores.
Ele desce a rua, roupas
sujas do trabalho dos dias anteriores, um boné na cabeça e a mão cobrindo os
olhos para evitar que se encham de poeira. Na sacola leva sua marmita com a
comida dormida e uma pequena garrafa de café. Só voltará para casa no fim da
tarde. Hoje não vai à escola, pois que não tem professores. Irá jogar bola na
quadra sintética do bairro e depois sentar-se num pé de muro, com outros
meninos, para cutucarem seus telefones celulares, rirem das bobagens da
internet e comentarem nos posts de alguma garota ou garoto.
O menino volta para casa,
sujo do serviço e do jogo de bola. Toma bênção da mãe, que, sozinha, assiste à
televisão a novela do horário. Ele entra no banheiro e se lava, a água suja
escorrendo pelo piso de cimento grosso e descendo pelo ralo. Com água caindo na
cabeça e descendo pelo corpo, sonha com outra vida, em que tem dinheiro, carro,
casa bonita, que pode ir à praia e encher a mãe de presentes. Sorri com seus
sonhos e seca-se em sua toalha encardida.
Ao sair do banheiro, volta à
sua humilde realidade, quase miserável. Passa pela mãe em frente à televisão,
que lhe diz que a janta está pronta. No quarto, senta-se na cama estreita, com
colchão puído e quase acabado. No canto há um guarda-roupas de duas portas,
velho e com as gavetas destroçadas. Uma caixa no chão abriga, num amontoado
disforme, as coisas que não cabem no guarda-roupas. Um lençol ralo cobre a
cama, encimada por um travesseiro duro. Sobre os pés da mesma, seu cobertor
antigo e cheio de bolinhas.
O menino suspira
dolorosamente. Toma seu celular, com a bateria relaxada, e acessa o wi-fi do
vizinho. Passa meia hora cutucando o aparelho, quando sua mãe o chama e diz que
vá jantar e se deitar, porque precisa se levantar cedo para trabalhar.
Ele então sai do quarto,
deixando, relutantemente, o celular com o cabo na tomada. Na cozinha, sem ver
direito o que tem ali, pega o prato, coloca a comida e volta para o quarto. Com
o prato nos joelhos e o telefone novamente nas mãos, come alternando
colheradas, que engole sem mastigar direito, e acesso aos posts em seus apps.
As janelas de latão da casa
estão fechadas. O vento as sacode, produzindo ruídos constantes e irritantes.
Mesmo que a mãe coloque nelas calços de pano e pedaços de chinelos velhos, o
ruindo não acaba. Do lado de fora o vento canta e a poeira sobe. O sol já se
pôs há muito tempo. São quase vinte e uma horas. O menino deita o prato no chão
e se deita na cama, enfiando os pés debaixo do cobertor velho para evitar o
resfriamento agressivo dos mesmos. A mãe ralha, e o manda ir guardar o prato e
escovar os dentes. Ele deixa-se deitar por uns vinte minutos, cutucando seu
celular, quando a mãe grita. Então ele se levanta sem coragem, pega o prato e
leva junto o telefone. Desta vez senta-se na mesa da cozinha, sem olhar ao
redor e se põe a navegar pela internet.
O vento está ativo e frio do
lado de fora da casa. São já dez horas da noite. A mãe do menino desligou a
televisão e veio mandar-lhe deitar porque já era tarde. Ele pediu a bênção e
foi para seu quarto. Passou pelo banheiro, escovou os dentes, usou o vaso e
bebeu água da pia com as mãos. Deitado na cama estreita, cobriu-se e colocou de
novo o celular no carregador. Não conseguiria dormir tão cedo, acostumado que
estava em chegar tarde depois das aulas. Não há, em sua casa, livros de
literatura, e se tivesse, não os leria.
À noite sonhou que andava
pela capoeira. Folhas secas estalavam sob seus pés e o cheiro da resina das
aroeiras impregnava suas narinas. Envolto num casaco grande e quente, subia uma
elevação, o ar de sua boca condensando numa névoa fina à sua frente. Vestido em
roupas quentes e uma touca na cabeça, chegou no topo da elevação e viu o sol
nascer ao longe, dourando os campos abaixo. A água, no estreito rio no fundo do
vale, tomou colorações belíssimas e os caniços às margens se agitaram com o
vento.
O menino acordou, tremendo,
as mãos entre as pernas, os pés gelados e o rosto queimando de frio. Enrolou-se
em seu cobertor e tentou dormir, mas já eram seis da manhã. Ouviu a mãe sair da
cama, andando devagar, entrar e sair do banheiro, voltar ao quarto e ir para a
cozinha. O rádio na cozinha foi ligado e uma música qualquer entrou pela casa.
O menino sabia que tinha que
se levantar. Vestiu as roupas sujas e duras de frio. Calçou suas botas rotas,
enfiou o boné na cabeça, banhou o rosto na água gelada da pia e entrou na
cozinha. A mãe já havia feito o café, posto na garrafa pequena e estava colocando
na marmita a comida que esquentara. Tomou a bênção do filho que se sentou à
cabeceira da mesa para tomar seu café com farinha de milho. Olhou as coisas na
cozinha, quase nada, e se esforçou para não se entristecer ainda mais.
O dia tinha chegado outra
vez. O menino estava na rua. Havia tomado a bênção da mãe e saído de casa. Na
sacola levava a marmita com a comida esquentada e uma pequena garrafa de café.
Vestido com as roupas sujas dos dias de trabalho, um boné na cabeça, cobria os
olhos com a mão para que não se enchesse de terra levantada pelo vento frio que
rodava pela rua. Atrás dele, o sol subia no céu, seus raios iluminando os tetos
irregulares enquanto empurrava a sombra por entre o casario disforme.
O menino teve a sensação de
que vive profundamente o próprio inverno.