Gilberto Medeiros
Imagem: Gilberto Medeiros. Print lua cheia - série Shanara.
O sol finalmente
nasceu.
Começou
a subir a Leste, às nossas costas. De cima da vereda, olhávamos o vale abaixo:
longo, negro como as entranhas dos infernos, e frio. O sol fazia o negrume da
noite se recolher do Oeste, mas o vale continuava coberto por uma névoa cinzenta
e compacta. Não se via nada abaixo dela, senão formas de grandes aglomerados
arbóreos. O rio corria à direita e desaparecia nas entranhas do vale. A mais ou
menos 3km estava escondida a fortaleza da bruxa que viemos encontrar.
Do meu
lado direito estavam Andora e Cármaon, e do esquerdo, Iankar e Maoma, quatro
dos capitães selecionados para essa missão. Éramos agora cinco, dos 8ito que
partimos de Kânion para Vaikar. Perdemos três companheiros, mortos e devorados pelas
monstruosidades que nos atacaram. E isso não era brincadeira, tratando-se de
quem somos: capitães testados em batalhas e expedições perigosas contra
monstros, feiticeiros, magos ou bruxos capazes de dizimarem uma aldeia inteira
num ataque de poder.
- Eu
não acredito! – exclamou Andora. – Imaginei que este vale estivesse limpo. Mas
olha isso: continua debaixo da mesma maldita névoa! Tão escura quanto se fosse
noite.
- O
feitiço de encobrimento foi lançado por Aracorn, o pior dos magos feiticeiros
que existe. – comentou Cármaon. – Não é um feitiço que se desfaz com a luz do
sol. Ele deve cobrir o vale inteiro...
- Então o maldito feiticeiro realmente sabe? –
interrogou Maoma.
- Não
importa. – cortei a conversa. – Aracorn sabe quem somos e o que viemos fazer
aqui, mas o mais importante é estamos preparados. Temos que descer o vale de um
jeito ou de outro.
Iankar
começou a descer sem dizer nenhuma palavra. Seu instinto natural de rastreador
o fizera o melhor nessa categoria entre os rastreadores do Mundo Nascente.
Todos nós
sobrevivemos à custa de muita luta na noite anterior. Agora que o sol apareceu,
podíamos nos ver: cheios de cicatrizes e cobertos de sangue e líquido escuro
vasados de monstros guerreiros mortos.
Encontrar
a Bruxa Vaanda era nossa missão. Ela era portadora da Profecia que revelava
como destruir Abssoul, o maior inimigo dos povos do Mundo Nascente, quando ele escapasse
de Bulgorn, o exílio para onde foi mandando após sua derrota nas Guerras Primais,
há dez mil anos.
As
lendas sobre as batalhas de dez mil anos viviam entre os povos do Mundo
Nascente. No entanto, muito de sua força havia se perdido, até que Aracorn
nascera, há três mil anos. Seu nascimento trouxe temores e fez nascer a
profecia da morte de Abssoul. Magos, feiticeiros, sábios, bruxas e grandes
líderes retomaram os estudos e debates sobre as guerras antigas e concluíram
que Aracorn era cria de Abssoul.
Mandado
para preparar o retorno de seu progenitor, Aracorn começou a eliminar todos os
que se lhe opunham. Quando descobriram a profecia de Vaanda, o Conselho do
Mundo Nascente criou uma fortaleza em Vaikar e a isolaram ali, cercada de
poderosas barreiras enfeitiçadas que impediram, por muito tempo, Aracorn de a
encontrar e matar.
Mas,
três mil anos se passaram e parte da profecia se perdeu. Durante esse tempo,
Aracorn replanejou suas ações, ficando quase escondido. No entanto, agora os
horrores recomeçaram e, de um jeito ou de outro, ele descobriu o paradeiro de
Vaanda e vinha tentando destruí-la. Então o Conselho do Mundo Nascente se
reuniu e escolheu oito dos seus melhores capitães para encontrarem a fortaleza
de Vaanda, recuperarem a profecia e levá-la de volta a Kânion. Foi então
formado o Grupo dos 8ito.
Dos
oitos capitães escolhidos, cinco descíamos o escuro e frio vale para Vaikar.
Iankar ia à frente, silencioso como uma sombra. Rastreia uma trilha ou estrada.
Usa espadas curtas e emblema de falcão no peitoral da armadura. Iankar consegue
ver mesmo na névoa densa. Uma das habilidades mais importantes de um rastreador
é sua visão. Quando é aprovado em seu treinamento final, recebe o Feitiço da
Visão, que o possibilita enxergar mesmo no mais escuro breu.
Sou um
capitão treinado e líder desta equipe. A 300 anos ocupo o cargo de Capitão da Guarda
Real de Kânion. Minha responsabilidade é manter minha equipe segura e viva, se
puder. Distribuo os guerreiros conforme seu grau de importância, de rapidez e
força. Iankar, como deve ser, vai à frente. Maoma segue-lhe. A Capitã arqueira
está no lugar de onde pode atirar tanto para a frente quanto para trás sem ser
atingida logo depois. Eu venho em seguida. Esta posição me é garantida por ser
o líder do grupo e pelo meu papel nesta missão. Depois de mim vem Andora, a Capitã
espadachim que toca terror em qualquer inimigo. No final da fila vem Cármaon, o
Capitão cavaleiro que luta com machados. Cármaon é grande e assustador. Sua
força ultrapassa a de dois de nós juntos e sua ferocidade numa batalha tanto
encoraja seus companheiros quanto aterroriza seus inimigos.
A 300
metros abaixo, Iankar encontra a trilha. Para no meio dela, olhando para a
direita e depois para a esquerda com a testa franzida. Já estamos todos na trilha
e compreendemos imediatamente sua desconfiança: a trilha é uma estrada bem
usada. Não tão larga para passar um carro, mas aberta o suficiente para passar
vários guerreiros enfileirados rapidamente. Há rastros nas duas direções. Pés
grandes e pesados. Animais de guerra estão usando a estrada constantemente.
Isso não deveria ser assim.
- Há
soldados inimigos acampados aqui perto. – Iankar fala pela primeira vez, o
rosto fechado e os olhos de falcão iluminados por uma raiva repentina.
- Sim.
E com toda certeza soldados de Aracorn. – falo para todos.
-
Então as informações de que esteja tentando matar Vaanda são verdadeiras. –
completa Maoma.
-
Infelizmente podemos afirmar que sim. – digo. – Não foi à toa que Camaaz sempre
defendeu que deveríamos ter estabelecido um posto avançado nesta região para
guardar a fortaleza.
- E o
Conselho sempre afirmou que os feitiços eram suficientes. – rosnou Cármaon com
seu costumeiro mal humor. – Que manter Vaanda longe das atenções era a melhor
forma de protegê-la.
-
Talvez tenha sido durante muitos anos, mas Aracorn não só descobriu seu
esconderijo como usou o descuido do Conselho a seu favor.
- Mas
ainda não a capturou, do contrário, já teria marchado contra Kânion. – concluiu
Andora, que se mantivera calada até agora.
- Não.
Não a capturou. – digo. – Os feitiços são muito poderosos para serem derrubados
facilmente. Aracorn, no entanto, não é tolo e é um demônio poderoso, se não for
impedido, vai derrubá-los em algum momento. Agora entendo porque descobriu tão
cedo que vínhamos.
Todos
havíamos alimentado a suspeita de que alguém nos havia traído em Kânion, pois
apenas três dias após partir fomos perseguidos por caçadores de Aracorn. Nossos
companheiros morreram nos 12 dias que se seguiram e uma trilha de corpos de
todo tipo de criatura ficou pelo caminho. Na noite anterior fomos atingidos
pela névoa escura do feitiço de Aracorn. Agora todos sabíamos porque ele
descobriu: na verdade, estava esperando por isso e vinha observando Kânion há
muito tempo. A tolice do Conselheiro tinha dado a ele uma vantagem grande e
perigosa.
-
Temos que continuar. Precisamos ter cuidado. Os perigos agora são mais próximos
e em maior quantidade se há um acampamento aracorniano aqui. – digo.
Retomamos
nossa marcha, mais rápidos e mais atentos. Depois de uns 500 metros, ouvimos o
barulho. Um rugido estrondoso, gutural e longo. Sacamos nossas armas e
começamos a correr com a ligeireza de nosso treinamento. O tropel soou logo
atrás de nós. Paramos e estacamos. A fera apareceu na estrada com as presas à
mostra, rosnando e saltando numa velocidade alarmante. Uma flecha assobiou
sobre nossas cabeças e cravou entre o pescoço e a omoplata do tigre besta
guerreiro. O animal tropeçou para a frente, girou no ar e remeteu de costas em
nossa direção, quando outra flecha perfurou sua coluna, fazendo-o
desequilibra-se completamente, tombar de costas e rolar para nossos pés. Em
segundos os machados de Cármaon deceparam seu pescoço. Ficamos parados por uns
segundos, ouvindo e observando enquanto o sangue escuro e mal cheiroso jorrava
do corpo e da cabeça da besta morta.
-
Vamos! – ordenei e recomeçamos a correr.
Aquele
era apenas um batedor. Logo estaríamos sendo atacados. A primeira função de um
batedor é dar sinal de que a presa foi encontrada, depois, se ela fugir,
atacá-la a fim de atrasá-la e matar quem pudesse.
Aquele
tigre é um dos muitos animais escravizados, depois mortos e por fim ressuscitados
por Aracorn como bestas guerreiras. Um exército daquelas bestas estava em algum
lugar ao nosso redor. A julgar pela distância que ainda nos encontrávamos da
Fortaleza de Vaanda, ele estava à nossa frente e um pelotão vinha logo atrás,
já que o batedor nos achou vindo de trás. Exército ou pelotão, qualquer um dos
dois seria uma desgraça naquele lugar. Mas não poderíamos parar e tínhamos que
alcançar Vaanda de um jeito ou de outro.
Corremos.
Fomos treinados para lutar em qualquer lugar e em qualquer situação e para
vencermos longas distâncias correndo em pouco tempo. Aquela estrada estava
limpa, resultado da confiança estremada de quem liderava a tentativa de matar
Vaanda. Tinha certeza de que não seria descoberto antes de finda sua
empreitada. Apesar dos quinze dias de caminhada e dos doze dias de luta, nossos
corpos estavam bem. Mantínhamos nossa força e nossa mente controladas, nossas
cicatrizes curavam-se rápido. Tudo isso era devido não só ao treinamento, mas
também aos feitiços que nos envolvem e à comida feita com produtos trabalhados
para manter o corpo saudável, altamente curável e forte. No entanto, não impede
que sejamos mortos.
Minutos
depois ouvimos um uivo vindo de trás. O pelotão havia encontrado a carcaça do
tigre. Seguiram-se outros uivos, em tom de comando. Ainda não veio nada da
frente ou de outro lugar. Mas o que quer que viesse de trás vinha rápido.
- Mais
rápido! – comandei e aceleramos.
Iankar
corria como se estivesse flutuando. Maoma, eu e Andora mal tocávamos os pés no
chão, mas Cármaon fazia seus enormes pés ressoarem na estrada. Seu peso e seu
tamanho, no entanto, não o impediam de ser tão veloz quanto qualquer um de nós.
No fundo mantínhamos a ordem e a velocidade suficientes para deixar nossos
perseguidores à distância, mas não tão rápidos que nos pudesse meter numa armadilha
antes de a percebermos.
A
estrada bifurcou logo adiante. Iankar seguiu pela direita sem pestanejar.
Ninguém questionou. Estamos tão acostumados a confiar em nossos rastreadores
que quase nunca os questionamos. Iankar nunca erra e nos últimos quinze dias
tem nos mantido no caminho certo e nos livrado de quase tudo que vem pela
frente.
Uma
coisa parecia mudada: as indicações do Conselho do local da Fortaleza de
Vaanda. Era visível que o exército aracorniano interferira no ambiente,
fisicamente e com feitiços. A névoa era apenas um deles. Mas não de modo a destruir
todas as nossas referências. Já havíamos percorrido mais de 1km desde que o sol
nascera. Tínhamos esperança de percorrer pelo menos a metade dessa distância
sem ser notados. Agora, no entanto, estávamos preparados para sermos atacados a
qualquer momento. E isso não demorou.
Um
vulto enorme saltou da elevação à esquerda direto para cima de Iankar. O
guerreiro embolou-se e rolou no chão tão rápido como uma pedra atirada. O símio
uivou de frustração, bateu suas enormes patas no chão e girou, braços longos estendidos
em nossa direção. Logo depois curvou-se para trás num grito terrível de dor. As
facas de Iankar perfuraram suas costas uma após a outra. Eu e Andora atacamos
com nossas espadas. Andora usava espada longa e afiada que segurou com as duas
mãos e perfurou o ventre da besta. A besta curvou-se para a frente e recebeu
minha espada, que entrou por baixo do queixo e enterrou em seu crânio. Cármaon
cortou a perna esquerda da besta, fazendo-a vir abaixo. Saltei paro o lado e
para cima, girando e arrastando a espada que se soltou. Enquanto o símio
tombava, aceleramos para a frente. Mudamos nossa formação com Maoma, que nem
mexeu um dedo nessa luta, correndo na frente. Maoma reduzira o tamanho de seu
arco e o prendera às costas. Flechas seriam pouco usadas agora, mas o arco,
encurtado, formava uma arma tão perigosa quando uma espada, com cortes nas duas
extremidades. Corria agora com sua espada de uma mão e uma adaga. Suas flechas
estavam presas às costas e outras adagas e facas em seu sinto, botas e sabe-se
lá mais aonde. Todos nós usávamos mais de um tipo de arma e mais de uma arma
iam presas aos nossos corpos.
Iankar
assumiu a posição logo atrás de Maoma. Com ela correndo na frente, a função
dele agora era observar mais à distância e acima dos montes e nos alertar de
qualquer perigo percebido. Aquele símio estava muito bem escondido para que
Iankar não o percebesse. Na retaguarda, Andora e Cármaon estavam em silêncio e
concentrados. Eram peritos em ouvir à distância e estavam auscultando a
retaguarda. Segundos depois ouvimos os uivos. Acharam o símio morto. Nossa luta
nos atrasou o suficiente para permitir que o pelotão se aproximasse perigosamente.
-
Temos que acelerar, ou vão enfiar os focinhos em nossos traseiros já, já! – advertiu
Cármaon, com seu tom de humor que sempre usava no meio do perigo.
- Não.
Temos que manter o ritmo e a cautela. – respondi. – Temos perigo vindo de todos
os lados agora. Precisamos estar seguros quando tivermos que lutar pra valer.
- E
temos que chegar vivos em Vaanda! – gritou Andora, que detestava a ideia de ser
morta no meio de qualquer missão.
-
Falou mom capitã e minha senhorrita perrigôssa! – brincou Cármaon,
com a imitação de um sotaque inexistente, mas que todo mundo usa.
Todos
sorrimos. Cármaon sabia como era importante manter um grupo de guerreiros
animados. Mesmo sendo todos nós grandes guerreiros, aquela missão já havia dado
em nossos nervos mais de uma vez.
Um
assobio fino e baixo fez com que parássemos. Iankar deu o sinal e apontou para
a colina mais à frente. Vultos se posicionavam no topo dela.
- 10.
– disse ele. – Maoma? – indagou.
Maoma
já havia liberado seu arco e posto nele uma flecha.
-
Flechas triplas. – pediu Iankar.
Ela
então retirou mais duas flechas e as colocou na corda. Iankar encostou seu dedo
no ombro dela e liberou sua visão. As três flechas cantaram no ar e derrubaram
três bestas na colina. Logo em seguida mais três flechas cortaram o ar e três
novos corpos tombaram e rolaram colina abaixo. As bestas restantes não
esperaram outra saraivada. Partiram em nossa direção uivando e rosnando. Maoma
girou para trás e nós fechamos a frente para o impacto. Um uivo veio detrás e
ouvimos uma flecha zunir. Antes que as bestas chegassem pela frente, nos
abrimos numa formação estrela e nos preparamos.
-
Inferno de Drocorn! – xingou Cármaon de sua posição às minhas costas. – São
mais de 30 bestas dos diabos vindo pra cima de nós!
- E
vem emboladas. Não estão se dividindo! – alertou Maoma.
-
Formação Triangular! – comandei.
Andora
se moveu da ponta sul da estrela e Cármaon da ponta norte e formaram a base do
triângulo de frente para o pelotão, com Cármaon no centro. Eu e Iankar nos
unimos na outra ponta. As bestas da colina, espécies de lobos cadavéricos,
atacaram. Teríamos que eliminá-las tão rápido como o vento, ou nossos
companheiros estariam em apuros.
O
tempo foi mínimo da nova formação ao impacto. Ouvi as armas cantarem e cortarem
pele, músculo e ossos às minhas costas. Ao mesmo tempo, três bestas da colina,
sabe-se lá porque, saltaram encima de Iankar e uma veio em minha direção.
Iankar rolou por baixo, rasgando a primeira pelo ventre. Eu desci minha espada
pela enfrente, barrando a besta que saltou sobre mim, cortando sua cara pelo
meio. Desviei para o lado e girei, ao mesmo tempo que Iankar, para enfrentar as
demais.
As
bestas bateram no chão e, em vez de atacarem nossos companheiros pelas costas, voltaram-se
e partiram para cima de Iankar. Compreendi que foram enviadas para matar nosso
rastreador. Eliminamos as bestas num piscar de olhos. Enquanto os corpos caiam
às nossas costas gorgolejando rosnados ensanguentados, avançamos para a
batalha.
O
pelotão era formado por grandes orikorns, espécie de demônios inferiores,
filhos bastardos de Aracorn com alguma outra maldade qualquer. Tigres e lobos
serviam como batedores do pelotão e agora atacavam todos juntos.
Cármaon
apresentava uma certa satisfação em sua cara grande e brutal. Seus machados
dançavam, rodopiavam e desciam sem parar. Lascas de ossos, partes de crânios,
pele e sangue sujo voavam por todos os lados. Em um átimo de congelamento vi
tudo aquilo. Iankar havia se encostado em mim e liberado minha visão. Agora eu
tinha noção da batalha e dos passos a serem comandados.
Andora
e Maoma lutavam dos lados de Cármaon. Proteger, eliminar, liberar. Proteger,
eliminar, liberar. Esse era nosso lema: proteger o companheiro a todo custo,
eliminar a ameaça e liberar o companheiro para um novo ataque. Éramos bons
nisso e isso nos tornava invencíveis. Então partimos para eliminar e liberar.
Esse era o próximo passo.
Atacamos
os orikorns entre Cármaon e nossas guerreiras, abrindo um espaço suficiente
para reorganizarmos.
-
Maoma: liberar! – gritei, assumindo o lugar dela.
Maoma
retroagiu e correu para a colina, agora às nossas costas. De lá, em segundos,
disparou suas flexas. Vi um orikorn tombar à minha frente e outro à minha
direita.
-
Flecha! – comandei.
Cármaon
saltou para a frente, formando a ponta da flecha, Andora e Iankar formaram as
arestas, eu o punho. Atacamos.
Essa
formação era eficaz diante da desorganização do pelotão inimigo. Tinha ainda
outra função: proteger o líder do Grupo dos 8ito. Essa era uma ordem direta do
Conselho. Todos ali podiam morrer, eu não. Eu fora designado para ouvir a
Profecia e transferi-la para o Conselho, vivo ou morto. Agora tinha que ficar
vivo.
Mais
inimigos caíram com as flechas de Maoma. Atacamos e derrubamos lobos, tigres e
orikons. De repente uma trombeta infernal soou do meio dos orikons ainda de pé.
Um som estridente, gutural e chamativo, capaz de trazer até os demônios do
inferno. Uma flecha perfurou a garganta do orikon que assoprou a trombeta e o
som morreu num ruído desafinado e triste. Mas era tarde.
-
Lutem! – berrei um comando. Tínhamos que terminar aquilo e sair dali, ou todos
nós morreríamos com a chegada de reforços.
Da
colina Maoma assobiou seu canto de aviso: mais inimigos se aproximavam.
Derrubamos as bestas restantes e corremos para a colina. Apesar da névoa, vimos
vários vultos vindos correndo pela frente.
- Para
a esquerda! – ordenei. – Devemos subir a serra ao Sul. O rio está à nossa
direita, não podemos ir para lá. Temos que buscar proteção no alto.
Iankar
partiu correndo e fomos atrás dele.
A
serra se formava à esquerda do vale, alta e cheia de pedras. Sabíamos que seu
topo deveria está cheio de sentinelas, especialmente de gorilas enormes, como o
que nos atacou mais cedo. O sol já ia alto e estávamos no final da estrada,
acredito que a uns 800m da Fortaleza de Vaanda.
Subimos
correndo. Logo depois ouvimos urros e uivos no local da batalha. Um silêncio se
seguiu, rompido por ordens urradas e tropel de passos em todas as direções.
-
Vamos! – ordenei. – Temos que subir ainda mais. Não acredito que sairemos daqui
tão cedo se todo o exército nos cercar, mas ficar embaixo será ainda pior.
Iankar, procure um esconderijo que nos proteja tanto do alto quando de baixo.
Se formos atacados por cima, estaremos condenados.
Mas
uma coisa inesperada aconteceu. A névoa densa começou a baixar e a correr em
direção à Fortaleza, deixando à mostra o topo das grandes árvores. Subimos
ainda mais e nos colocamos de costas para o paredão rochoso, dentro de um nicho
mais de 30m da base. Olhando para trás e para baixo, vimos a névoa se
recolhendo e deixando o ambiente livre para o sol. É como ver o sol nascer de
novo. O topo das árvores estava coberto de gotas de água, como se uma chuva
fina tivesse caído durante à noite. Talvez tenha caído ali embaixo, mas não
choveu à noite na chapada.
A
névoa baixou. E vimos o pior cenário imaginável à nossa frente. A uns 300m, e
ao redor de toda a Fortaleza de Vaanda, tudo havia sido destruído. Todas as
árvores foram derrubadas e queimadas, o solo estava escavado em um fosso profundo,
sobreposto por várias pontes improvisadas, feitas de madeira, pedras e outros
restos. A Fortaleza estava protegida por uma grande e poderosa bolha de magia.
Grandes torres, com correntes e bolas de ferro penduradas foram erigidas em
volta de toda a Fortaleza. Um acampamento de exército circundava todo o
ambiente e milhares de bestas guerreiras ocupavam todos os lugares.
- Não
é possível! – exclamou Andora. – Eles estão atacando os feitiços com tudo que
podem.
- E
pelo visto estão fazendo a bolha recuar. – observou Iankar. – Em pouco tempo,
se não forem detidos, vão conseguir atingir a Fortaleza.
Eles
tinham razão. Era visível o progresso dos exércitos de Aracorn. Estavam
espancando a bolha de feitiços fazendo-a recuar. Cada pancada deixava-a menos forte.
Para compensar a perca de força, a bolha ia se concentrando, movimento que
acabaria assim que ela atingisse a fortaleza e não pudesse mais se concentrar.
Tudo
estava parado. Todas as bestas tinham parado para olhar para a serra, onde
estávamos.
Mas a
coisa mais sinistra estava acontecendo na frente do portão principal da
Fortaleza. Uma figura esquelética, com os braços esticados para o alto e a boca
escancarada, sugava a névoa que descia para suas entranhas. Aracorn percebera
que a névoa tinha começado a nos favorecer e mandara seu escravo removê-la.
A
figura esquelética começou a crescer e encher como um balão. Logo seu tamanho
ultrapassou a altura das muralhas.
Maoma
retirou uma flecha da aljava e a fincou ao seu lado. Retirou de seu cinto uma estopa
de fibras naturais enfeitiçadas, embebeu-a num óleo enfeitiçado e atou na ponta
da flexa. Recitou o encantamento do fogo, colocou a flexa no arco e se
preparou. Cármaon retirou seu isqueiro e ergueu o braço abaixo da ponta da
flexa. Ninguém disse nada. Observamos o esquelético mago inchar cada vez mais.
Quando a névoa estava a uns 10m ao seu redor, dei ordens:
-
Preparem-se!
Cármaon
riscou o isqueiro acendendo-o. Encostou a chama na estopa embebida em óleo.
Maoma levantou a flecha.
-
Agora! – ordenei.
A
névoa estava a uns 03m do mago. A flexa flamejante cortou o ar, assobiando, com
a chama atiçada pelo vento crescendo constantemente. Segundos depois ouvimos os
urros. Bestas guerreiras atiraram-se para o mago, mas já era tarde.
Compreenderam tarde a intenção de Maoma.
A
flexa flamejante acertou o peito do mago e o incendiou imediatamente. O fogo
alastrou como num monte de feno embebido em óleo. O mago urrou, um som oco e
gutural. Tentou se mover, tropeçou e tombou para a frente. A grande bola de névoa
atingiu várias tendas e o fogo ganhou vida, espalhando-se tão ferozmente que o
exército entrou em pânico.
Um
estrondo soou do lado da serra, que circundava o lado sul da Fortaleza. O som
vinha de um grande tambor. Um urro de comando soou morro abaixo, fazendo o
exército se concentrar. Outros urros de comando foram emitidos e o exército
começou a se mobilizar. No entanto, um estouro ensurdecedor veio do lado do
mago em chamas. Uma explosão que fez o fogo girar, arder e se espalhar ao
redor, queimando todas as tendas e tocando o desespero no exército.
Observamos
o fogo alastrar ao redor da Fortaleza, consumindo tudo, inclusive a maior parte
das bestas guerreiras. O exército, mesmo com as ordens vindas do morro, começou
a fugir desordenadamente.
- Lá!
– apontou Iankar, com sua visão de falcão. Todos apuramos nossos olhos e vimos,
através das chamas e da bolha de feitiços protetores, uma figura verde no topo
da torre norte da Fortaleza. Com os braços erguidos, ela comandava alguma
coisa. Ao mover os braços e abri-los com força, o fogo terminou de fechar o
círculo em torno da bolha e avançou em nossa direção, queimando tudo pela
frente. O fogo ganhou a serra e nos atingiu rapidamente, mas não nos queimou.
-
“Rápido!” – ouvimos um sussurro através das chamas.
Descemos
correndo a serra. 800m era o que nos separava da Fortaleza. Derrubamos as
bestas que ainda estavam vivas e tentavam nos atacar. 300m depois adentramos o
espaço árido e destruído. O fogo ali era
mais quente e seu bafejo nos fez arfar. Passamos pelos restos do mago, que
agora era apenas um esqueleto pequeno envolto em chamas, tentando resistir à
morte definitiva e emitindo gritos de terror. Alcançamos a ponte logo depois e
atravessamos a bolha. O portão se abriu, entramos, ele bateu forte às nossas
costas.
Paramos
num pátio largo, para o qual dava uma escada vinda da torre redonda e baixa à
frente. Esperamos. De repente apareceu uma figura fantasmagórica. Metida numa
longa túnica translúcida, era alta e esguia e flutuava escada abaixo. Seus
cabelos cinza desciam até à cintura e seus olhos eram opacos e frios. Ela veio
em nossa direção e parou a uns cinco metros de distância.
-
“Bem-vindos, o restante dos 8ito!” – exclamou, falando mais para o vento do que
para nós. Não teve como não ficar arrepiado. – “Eu sou Vaanda, a Bruxa da
Profecia.” – disse, encarando o espanto de todos.
Outra
figura desceu a escada, vinda do lado da torre alta. Era a figura vestida de
verde que controlara o fogo. Olhamos de uma para a outro. A figura cinzenta
virou-se e olhou par trás.
- “Essa
é minha filha, Yaanda, a Bruxa que controla os elementos naturais. Como viram,
foi ela quem deu vida ao fogo enfeitiçado de Maoma, queimando o exército e
dando tempo para vocês entrarem...”
- Se
poderia queimá-lo, por quê ainda não havia feito? – interrogou Cármaon
impaciente. Antes que eu o repreendesse, Yaanda falou, com sua voz sussurrante:
- “Só
posso comandar daqui de dentro feitiços naturais iniciados do lado de fora. O
exército de Aracorn percebeu isso logo que chegou aqui. Então parou de usar
feitiços naturais e passou a enfeitiçar suas armas com feitiços que não posso
comandar”.
- “Cruisal,
líder dos 8ito”. – chamou-me Vaanda. – “Finalmente você chegou. É uma pena
decepcioná-lo nesta missão, Capitão Guerreiro da Guarda Real. Mas você não será
o portador da Profecia”.
Aquilo
não estava certo. O Conselho me escolheu e mandou-me exatamente para isso:
ouvir e transmitir a profecia, vivo ou morto. Agora ouço que não serei eu a
fazer isso?
- Como
pode ser isso? Recebi a missão do Conselho e meus companheiros deram suas vidas
para me proteger. – indaguei indignado.
- “Entendo
sua raiva, Cruisal”. – falou Vaanda. – “Mas o conselho não entende quase nada
de minha vida. Olhe para mim. Por que você acha que fiquei assim?”
Não respondi.
Ela continuou:
- “Três
mil anos se passaram desde que o Conselho do Mundo Nascente me aprisionou nesta
Fortaleza. Sozinha. Seus feitiços faziam a erva e a fruta crescerem. Enchiam
meu prato e me davam leite dispensando meu esforço. Mas como você acha que ficaria
a mente de uma mulher presa sozinha por tanto tempo? O Conselho supôs que eu
aguentaria, e me esqueceu. Mas Aracorn não. Há 1500 anos, recebi uma visita
inesperada. O Bruxo Komarrá veio me visitar. Espantou-me que ele pudesse se
aproximar da barreira de feitiços e atravessá-la sem problemas. Mas, Komarrá
era um bruxo digno. Ele criou vários dos feitiços que o Conselho usou para
selar minha fortaleza. Não foi problema atravessar a barreira. E sabem o que
aconteceu? Eu me apaixonei por ele”.
Impossível!
A profecia dizia que Vaanda não poderia se apaixonar. Se isso acontecesse ela
deveria morrer para que a profecia se cumprisse. Todos nós olhamos espantados
para ela.
- “Eu
sei o que estão pensando”. – iisse Vaanda. – “Sim. A profecia dizia a verdade.
Com a paixão veio minha gravidez. Eu dei à luz Yaanda. Depois sabia o que tinha
que fazer. Mesmo com a contraposição de Komarrá, quando Yaanda nasceu e estava
suficientemente grande e segura fiz meu sacrifício. No entanto, descobri que a
profecia precisava habitar alguma coisa para sobreviver. Nunca tinha imaginado
isso. Para evitar que ela assumisse o corpo de Yaanda, uma feiticeira com
muitos poderes, aprisionei meu espírito na Fortaleza. O ódio e o desespero tomaram
forma em Komarrá. Aracorn havia plantado ali uma pequena semente. Ela não
impediu Kamarrá de entrar em minha fortaleza, porque ainda não tinha força
suficiente. Aracorn sabia disso. Mas com o ódio novo e com a raiva, ela cresceu
rápido. Alguns anos depois, consumido pelo ódio, Komarrá iniciou a quebra dos
feitiços protetores. Teria conseguido, mas nesse tempo Yaanda já tinha
desenvolvido muito dos seus poderes. Ela comandou a natureza que expulsou
Komarrá de dentro da bolha e o matou na encosta da montanha. Aracorn, mil anos
depois, ressuscitou seu antigo servo e o tornou num escravo portador de seu
feitiço de névoa. Sim. Komarrá era o mago feiticeiro que vocês queimaram na
entrada da Fortaleza”.
A
história poderia ser ainda mais longa, mas eu já estava ficando impaciente.
Então falei:
- Você
disse que não sou o escolhido. Quem então é?
- “A
profecia jamais pode ser ouvida e levada por outra pessoa senão eu mesma. O
Conselho sabia disso. Mas escolheu esconder isso para que você não desistisse
se soubesse a verdade”.
- Que
verdade? – interrompeu Maoma bruscamente.
- “Que
apenas uma mulher pode ser portadora da profecia”.
Arquejamos
com essa revelação. Olhamos para Maoma e Andora. Esta perguntou:
-
Então, eu ou Maoma devemos ouvir e levar a profecia ao Conselho?
- “Não”.
– respondeu Vaanda. – “Uma de vocês deverá morrer para que meu espírito assuma
seu corpo e leve a profecia diretamente ao Conselho. Qual de vocês se oferece
para o sacrifício?”